No
trabalho, Amadeu discute com o colega:
– Ora,
Amadeu! Joga fora isso! Pra mim é lixo.
–Tô
te falando, homem. Esse toco de papel voou no meu pé esses dias
atrás e não desgrudou mais de mim.
– Claro
que desgrudou. Tanto é que está no seu bolso agora, e não grudado
no sapato como contou esses dias.
– Eu
contei que veio voando atrás de mim. Me perseguindo!!
– Claro,
se o vento está te acompanhando qualquer papel vai atrás de você,
besta.
– Não
xinga que o caso é sério..., depois vai ter que me procurar lá no
além pra pedir desculpa.
– Não
vem com essa, Amadeu. Você contou o seu casinho intimo com o toco de
papel na hora do almoço, diante da peãozada inteira da fábrica. Tá
todo mundo tirando sarro. Se for desse jeito, vai ter um batalhão
enorme procurando você no outro mundo, cara.
– Você
fala como se eu já estivesse lá, assim, na maior naturalidade?
– E
você, que contou lá na mesa do refeitório, com trezentos e
cinquenta peão entrando e saindo, assim, na maior naturalidade?
– É
que eu estava nervoso.
– Reparei.
Falou alto pra caramba, meu!
– Mas
me diga, você. Se tivesse que desviar dum papelzinho chato que não
para de rodear tua cabeça a todo instante. Daí você se enerva e
resolve correr do tal papel para tomar uma distância, e descobre que
ele vem atrás sem ao menos dançar no ar, como deveria ser quando
está ventando, como agiria?
– Se
você estava correndo, com certeza teve que olhar correndo, prestar
atenção onde pisava correndo, cuidando para não bater nas pessoas
a sua volta, “correndo”. É claro que não via o papel com muita
atenção. Seus olhos te enganaram...
– Não
tinha como. Ele me persegui a dois palmos da minha cabeça.
– Não
era nos pés?
– Também.
– Explica!
– O
quê, bolas.
– Primeiro
vinha voando atrás de você, depois te perseguia na cabeça, aí
passou a voar baixinho nas pernas, até que grudou no sapato...
– Você
tá embolando tudo. Essa última parte de voar nas pernas não falei
não.
– Então
tá mentindo. Não tá vendo que não tem lógica alguma?
– Vô
falá de novo, tá. Ele me perseguiu, mesmo eu correndo com tudo, a
uns dois palmos da minha cabeça. Deu umas três voltas em torno como
se fosse mosca num lixo. Como eu tentava dar tapas naquele ser do
outro mundo, ele passou a grudar aonde encostava. Me grudou nas
costas. Tirei a camisa e sacudi ali mesmo, na rua. Foi pras pernas.
Dei tapa de toda maneira. Veio nos braços, depois na cabeça.
– E
o povão da rua?
– Era
só gargalhada, cara. Só que eu mostrava o papel me atacando feito
vespa braba, e ninguém via nada.
– E
os que estava mais perto?
– Pois
era justamente pra esse que eu falava, apontava, gritava mostrando, e
nada. Ficavam olhando pra cima, pros lados, com a cara perdida até
que caiam na gargalhada dizendo que um louco tava dançando ali.
– E
quando é que parou essa loucura toda?
– Quando
eu caí de cansaço, estirado no chão. Veio flutuando bem mansinho e
grudou na ponta do meu sapato. Não saiu mais. Quando cheguei em
casa, fui logo tirando os calçados. Mais por meus pés estarem em
fogo de tanta canseira. Andei o dia todo e ainda tive de dançar uma
meia hora de sapateado com aquele papel. Realmente não via a hora de
tirar os calçados dos pés. Mas adivinhe! Quando puxei o sapato em
que o miserável estava grudado, ele desgrudou bem de leve e veio pro
meu dedão do mesmo pé. Então tirei a meia, pois ele de novo,
desgrudou da ponta da meia e veio mansamente na minha mão.
– Você
aproveitou a ocasião, Amadeu?
– Que
ocasião?
– Mas
tu é burro mesmo, Amadeu. A ocasião de amassar o miserável, jogar
no lixo, queimar, sei lá, aproveitar...
– Bem,
quando tomei consciência que estava com aquela coisa na mão, algo
me dizia que não era nada do que eu via. Era como se segurasse um
ser vivo entre meus dedos.
– Tá
louco?
– Tinha
escritas no papel. Quando notei a textura e as letras é que percebi
que segurava um retalho de jornal velho. Meio amassado, meio
amarelado, mais ou menos um palmo de tamanho, e cheirava esquisito.
Tinha um título em negrito com letras grandes que não terminava por
causa do rasgado: “Nota de falecim...”.
Embaixo do título havia um monte de nomes de pessoas falecidas, as
esposas ou maridos, filhos e filhas, e o local do enterro de cada um
deles.
– Agora
fala o que tem demais nisso!
– Simples,
amigo! Um dos nomes era o meu!
– Oras
bolas, Amadeu! Quantos nomes iguais existem por aí? Leu o teu num
toco de jornal e já surtou?
– Eu
não li “só o meu nome”, cara! Tava lá o nome da minha mulher,
das minhas duas filhas, a minha idade, e o local do meu sepultamento,
acredita!?
– Não.
– Pois
trate de acreditar, amigo. Pois estou sendo enterrado neste exato
momento lá no cemitério central. O que eu queria mesmo é me
despedir de um amigo. Você, Eduardo!
Nesse
momento a imagem do colega Amadeu começa a desfocar, depois fica
transparente, e como uma névoa fraca vai sumindo bem devagarzinho,
até que não resta mais nada. Tudo acontecendo diante dos olhos
esbugalhados do desesperado e incrédulo Eduardo.
Como
que acordando de um pesadelo, atira os braços para cima num grito
seco e curto caindo de costas no chão da fábrica.
Os
colegas em volta vem acudir. Está aos berros falando tudo errado sem
conseguir organizar as imagens que lhe passam pela cabeça.
Quando
perguntaram do Amadeu, tudo que pode dizer é que estava sendo
enterrado no cemitério central. Alguns correram telefonar para o
cemitério a fim de certificar se era verdade, enquanto outros foram
pro vestiário verificar se a roupa no armário do Amadeu tinha sido
mexida, ou usada. Dupla surpresa! A funerária no cemitério
confirmou o nome de Amadeu Lopes Nuenze sendo sepultado naquele
momento. Os operários encontraram o armário do Amadeu vazio. Alguém
tinha vestido seu uniforme.
A
algazarra foi tamanha, que a empresa desligou os maquinários e pediu
calma aos peões. O gerente geral com uma comitiva de encarregados de
setores foram, cada um com seu veículo, ou de carona, até o
cemitério averiguar o ocorrido, uma vez que o cartão ponto daquele
funcionário estava batida sua entrada pela manhã.
Ao
chegarem, foram até o local onde estavam fechando a tampa do caixão
do suposto funcionário..., surpresa geral! O Amadeu estava dentro do
caixão com o uniforme da empresa.
Ninguém
teve coragem de parar o férito.
Baixaram
o caixão na cova e jogaram terra em cima.
Enquanto
isso, lá na empresa, sozinho o Eduardo lia um toco de jornal velho,
que com a queda do seu susto, acabou achando jogado no chão:
“Nota
de falecim...
Faleceu
hoje com a idade de 38 anos o senhor Amadeu Lopes Nuenze, de mal
súbito. Deixa esposa Maria Franca Nuenze, Filhas Emanda Nuenze e
Serina Nuenze. Sepultamento no cemitério central.
(…)
- depois de mais algumas notas...
Faleceu
hoje com a idade de 41 anos o senhor Eduardo Costa Ribamar, de mau
súbito. Deixa esposa Maria Costa Ribamar, filhos: Celina Ribamar e
Emanuello Ribamar. Sepultamento no cemitério central."
Eduardo
cai duro, de mal súbito.
Autor:
Eber Godoi
Esse conto é envolvente e perturbador, misturando elementos de realismo, absurdo e terror psicológico. Conto que brinca com a fragilidade da realidade e do destino, criando um clima de tensão e surpresa.
1. Mistério e surrealismo
O conto começa com uma situação cotidiana—dois colegas conversando no trabalho—mas rapidamente evolui para algo surreal. O papel misterioso que persegue Amadeu desafia as leis da física e da lógica, criando uma sensação de desconforto crescente. Esse elemento sobrenatural contrasta com o ambiente comum de uma fábrica, tornando a revelação ainda mais impactante.
2. O papel como símbolo do destino
O papel que insiste em seguir Amadeu pode ser interpretado como uma representação do destino inevitável. Ele começa como um objeto banal, mas aos poucos se transforma em algo sinistro, carregando a premonição da morte. Essa metáfora é reforçada quando se descobre que o papel contém uma nota de falecimento com os nomes de Amadeu e sua família. É como se a morte estivesse marcada no papel antes mesmo de acontecer.
3. O medo do invisível e da loucura
Ninguém além de Amadeu vê o papel se mover de forma sobrenatural, o que gera uma sensação de isolamento e descrença por parte dos colegas. Isso remete ao medo da loucura—quando alguém percebe algo que os outros não veem, sua sanidade é questionada. O conto brinca com essa ideia ao deixar em aberto se o fenômeno era realmente paranormal ou apenas um delírio de Amadeu.
4. Estrutura cíclica e fatalismo
A revelação final, em que Eduardo encontra seu próprio nome no papel, reforça a ideia de um ciclo inevitável. A morte anunciada no papel se concretiza, e o mesmo destino parece se repetir com Eduardo. Isso gera uma atmosfera de inevitabilidade, onde o destino dos personagens já está selado, sem possibilidade de fuga. A forma como o conto termina abruptamente com Eduardo caindo de mal súbito reforça esse caráter trágico e inescapável.
Nota
de falecimento 3
Na
televisão, o jornalista exibe um jornal que mostra em detalhes a
reportagem de uma tragédia que choca seus ouvintes:
“O
avião que caiu transportava 386
passageiros mais 30
tripulantes.
Não houve sobreviventes...”
09:45 AM - Na caixa preta, falas do
comandante com uma aeromoça:
– Que você está dizendo? Uma
nota do jornal diz que este avião caiu?
– Sim,
comandante. Eu vi grudado lá no jornal uma nota de falecimento
enorme com foto, e tudo mais.
– Volte
para suas funções e atenda os passageiros. Agora!
Quem
ouve imagina que a aeromoça responde com um aceno de cabeça e volta
para dentro da nave, com um sorriso amável e mal ensaiado no rosto.
10:17
AM - A caixa preta não registra mais nada por cerca de meia hora.
Dando a impressão de que os pilotos haviam saído da cabine. Ouve-se
uma voz no rádio interno da cabine:
–
Comandante. Acho que deveria vir
aqui controlar o indivíduo! Está chamando muita atenção dos
demais passageiros.
– Peça
ajuda à comissária de bordo. Diga-lhe que se não calar vamos
prendê-lo! Não posso sair daqui do controle do avião toda vez que
alguém surtar aí dentro.
Uma
voz feminina houve-se ao fundo como se estivesse se afastando. Outra
voz vem chegando no mesmo momento.
– Capitão!
Lembra que te falei uma meia hora atrás, que tinha visto uma
reportagem do nosso avião ter caído? Pois o homem enlouquecido lá
dentro é quem está com o jornal.
– Co-piloto,
assuma o controle. Vou verificar o que está ocorrendo. Se for
qualquer tipo de gracinha, serei obrigado a prender aquele sujeito.
10:40
AM - Passam-se vinte e três minutos de silêncio na caixa preta.
– Dê uma olhada neste jornal,
cara! Tem um pedaço enorme de um jornal velho e rasgado colado numa
das páginas. Não vá surtar igual aquele sujeito, viu?
– O
que fizeram para acalmá-lo?
– Dei
uma injeção de sedativo. Está dormindo feito bebezinho. Largamos
ele na próxima escala.
-
Veja comandante! Parece que o pedaço de jornal está coladíssimo na
folha do jornal novo!?
– Alguém
deve ter colado aí para fazer sacanagem. Pode ser o próprio artista
que está dormindo agora.
– As
aeromoças estão nervosas. Uma delas leu duas vezes a reportagem. O
jornal passou de mão em mão lá na tripulação e os passageiros
estão sentindo o nervosismo geral. Acho que temos que acalmá-los de
algum jeito, comandante.
– Já
sei o que fazer. Ligue o rádio interno. Vou falar com todos:
– “Senhoras e senhores
passageiros: um homem começou um alvoroço por causa de um pedaço
rasgado de jornal velho, contendo suposta reportagem de um avião
caído. Asseguro a todos que estamos voando bem, clima e vento lá
fora tranquilo e favorável. Nave em prefeitas condições. Não se
deixem levar por pessoas perturbadas e desqualificadas que
eventualmente aparecem no nosso meio. Aproveitem a viagem com
satisfação e alegria da aventura. Obrigado!”
–
Agora pegue esse miserável de
jornal e vá jogar no vaso do banheiro.
– Sim
senhor! Agora mesmo!
10:48
- Houve-se um barulho de jornal sendo amassado e a porta da cabine
abrindo e fechando em seguida.
11:13
- Alguns minutos depois o co-piloto volta. Barulho da porta novamente
sendo destrancada, possivelmente pelo comandante. A porta é trancada
novamente.
–
Joguei...
– O
que foi?
– É,
bem...
– O
que foi? Tem alguma coisa te incomodando?
– É
que eu li o jornal. Não aguentei de curiosidade.
– Não
acredito. Agora vai me dizer que também está dando crédito ao
jornal podre?
– Talvez...
– Sabe
de uma coisa? Vou tomar café. Pretendo continuar sóbrio quando você
e o resto da tripulação enlouquecer.
11:43 - Silêncio novamente. Depois
começou uns barulhos da porta da cabine. Alguém saindo, entrando,
saindo, entrando, palavrão, saindo novamente. Durante esse tempo
todo, o avião permaneceu no piloto automático.
Uma
pessoa entra ofegante na cabine, mexe nos aparelhos. Liga o rádio
para se comunicar com a torre. Ouve-se batidas insistentes na porta.
Desiste do rádio e sai da cabine. A porta da cabine abre com
estrondo. A voz da comissária de bordo está nervosa:
– Capitão! Não sei mais o que
fazer para controlar os ânimos lá dentro. Parece que todos os
passageiros leram sobre aquele anúncio do jornal! Nunca lidei com
tamanha confusão.
– Pelo
que vejo vamos ter que tomar outra providência, e rápido! Peça
ajuda aos teus colegas lá dentro, de preferência “todos” da
tripulação, e joguem no vazo do banheiro “todos” os jornais que
encontrar. Seja particular ou não. Seja de uso da companhia ou não.
Confisquem “todos” os jornais dentro deste avião. Expliquem aos
usuários que é por medida de segurança, já que o mesmo está
alterando os ânimos de “todos” dentro da nave.
– Torre
para 747-8, D-ABYA responda.
– Aqui
Thansa-line, prefixo D-ABYA
na escuta.
– Estamos
perdendo sinal em espaços regulares, queira confirmar contato.
– Todos
os instrumentos OK. Rádio OK. Nave em perfeitas condições. Alguma
preocupação?
– Sim.
O radar não captou seu prefixo em alguns pontos do trajeto. Poderia
confirmar alguma anomalia?
– Não.
Sem confirmação. Não está havendo anomalia alguma. Nem elétrica,
nem mecânica. Atmosfera limpa, sem incidência magnética ou do
tipo.
– Percebemos
perda de sinal ás 10:48 AM, e depois rareou de meia em meia hora
mais ou menos. Confirma?
– Não.
Nossos instrumentos operam
normalmente. O sinal transmitido pela
torre está OK. Qualquer variação informe, certo?
– Certo.
Estaremos atentos.
12:15
PM – A voz no rádio interno da cabine informa:
– Comandante!
Já confisquemos todos os jornais da Classe
Econômica.
Muitos se mostraram irredutíveis
e irritadíssimos quanto a ideia,
mas dos 298 passageiros, 227 tinham jornais consigo.
– E
quantos sabiam da notícia maluca?
– Todos!
–
Agora vão para a primeira classe. A
First Class é a mais irritante e perigosa das “ne
me touchez pas, (não
me toque).“
Muito
jeito está bem?
– Nos
deseje boa sorte.
12:30 PM – Aviso na porta da
cabine indicando alguém do lado de fora. Uma comissária entra
ofegantemente disfarçada:
–
O
senhor precisa ver aquilo! A Classe
Econômica
está em polvorosa! Todos estão falando alto, berrando uns
com outros! Tentei entender a gritaria e o que consegui é que tem
gente afirmando que o tal jornal está passando pelo lado de fora do
avião. Alguns estão até batendo e grudando nas janelas.
– Passando!?
Como assim, passando? Tem jornal voando lá fora do avião nesta
altura?
– Senhor.
Acho que estamos na beira de uma histeria
coletiva. Não acho outro argumento que explique isso.
– E
os jornais da 1ª classe?
– Todos recolhidos a muito custo.
Estão se reunindo para processar a empresa.
– Isso ja era esperado. Ainda bem
que são só oito.
– Oito podres da grana,
comandante...!
– Agora
vão lá para o Business. Se deram conta de oito mega-chatos, darão
conta de oitenta médios-chatos. Enquanto
isso vou tentar acalmar os ânimos dos mais oprimidos.
13:13
– Pelo som registrado na caixa preta, toda a tripulação se
dirigiu
até a primeira classe e está em frente a porta da cabine. Todos
falando ao mesmo tempo. Muito difícil entender alguma fala naquela
confusão de vozes. Uma voz mais próxima falou alto e apavorado. Era
a do co-piloto:
– Comandante, o que é aquilo? O
jornal está no vidro da cabine!
– Não pode ser! Como é que
grudou ali?
– Veja,
comandante! É impressão minha, ou ele
está dentro
dos
vidros?
– Sim!
Você está certíssimo para o meu desespero, homem. Esse maldito
jornal está entre ”PVB
(poly vinyl butyral)”
e os vidros
do para-brisa! Ei!
O que está acontecendo?
– O avião inclinou 12 graus!
– Veja a velocidade...
– Normal, comandante.
– As asas! Como estão os
spoilers, os estabilizadores?
–Tudo perfeito. Não a nada de
errado com o avião! Atenção, 32 graus e continua inclinando.
– Mas
o que está havendo? Veja pressão atmosférica, sistemas elétricos.
Tem que ter alguma coisa. Continue
tentando subir. Vou falar com a tripulação e com os passageiros.
“Atenção
todos. Tripulantes e passageiros. O nosso avião está sofrendo uma
leve inclinação. Por gentileza, queiram permanecer
sentados e
pôr seus cintos. Se acontecer do aparelho inclinar
demais, pode haver variação de pressão e as máscaras cairão para
seu melhor conforto. Mas não a
nada para
se preocupar nem que
possa ser de alarme. Obrigado.“
13:17
– Ao
fundo pode-se ouvir a confusão generalizada que começa tomar corpo.
O comandante tenta entrar em contato com a torre de comando mas, não
ha sinal algum.
– Mayday, Mayday para torre. 747-8
prefixo D-ABYA, responda!
– Estamos com 44 graus e
inclinando , senhor!
– Mayday! Nosso avião está sendo
puxado para baixo. Mayday pelo amor de Deus!!!
– O avião não está obedecendo
comandante. Está tudo certo e não sobe!
– Vamos puxar o manche com força,
agora!
A caixa preta começa a emitir
barulhos de interferência na gravação. Depois de alguns estalos,
uma voz gritando com incrível nitidez:
– É este maldito jornal! Está
puxando a aeronave para baixo! Ele vai ter que sair dali agora mesmo!
– Não! Não faça isso, homem!
Está louco?
13:33 – Um barulho alto de objeto
se chocando contra vidro, barulho de estilhaços, vozes de dois
homens gritando. Um ronco ensurdecedor de vento entrando na cabine em
meio às vozes do piloto e do co-piloto que tentam se fazer ouvir aos
berros:
– Comandante! O avião está
declinando dos 87 graus!
– Não vai dar tempo. Estamos
perto demais do mar! Prepare-se para o impacto!
Na
televisão, o jornalista
exibe um jornal que mostra em detalhes a
reportagem de uma
tragédia que
choca seus ouvintes:
“O
avião que caiu transportava 386
passageiros mais 30
tripulantes.
Não houve sobreviventes. A
Empresa Thansa-line
postou uma nota
de condolências e outra de falecimento
com todos os mortos envolvidos...”
Autor:
Eber Godoi
Envolvente e inquietante, misturando elementos de suspense, horror psicológico e tragédia. Combina mistério, terror e tragédia, criando um impacto psicológico crescente e intenso.
1. O jornal como presságio e símbolo do inevitável
O conto utiliza um objeto cotidiano—um jornal—para transformar uma situação aparentemente comum em algo sobrenatural. A existência de uma reportagem detalhada sobre um desastre que ainda não aconteceu cria um forte elemento de premonição. A medida que a história avança, o jornal se torna cada vez mais sinistro, afetando a tripulação e os passageiros, até se integrar fisicamente à aeronave, reforçando sua influência sobre o destino do voo.
2. O impacto da histeria coletiva
À medida que mais pessoas tomam conhecimento da notícia macabra no jornal, a tensão aumenta. O comandante tenta minimizar o pânico, mas o medo se espalha rapidamente. Os passageiros entram em desespero, acreditando no destino já selado do avião. A histeria coletiva é um dos temas centrais do conto, mostrando como o medo irracional pode se expandir até comprometer o controle de uma situação crítica.
3. Estrutura em formato de registros da caixa preta
O uso de marcações temporais e trechos de diálogos registrados na caixa preta aumenta a sensação de realismo, criando um ritmo acelerado e fragmentado. Esse recurso contribui para a imersão do leitor, dando a impressão de que está acompanhando o desenrolar dos eventos através de gravações oficiais. Esse formato também enfatiza o horror crescente, pois revela em tempo real os momentos de tensão extrema antes da tragédia.
4. Fatalismo e a impossibilidade de escapar do destino
Desde o início, o conto sugere que a queda do avião já está predeterminada. O comandante tenta manter o controle, mas percebe que tudo leva para um desfecho inevitável. A aeronave começa a inclinar, os sistemas mostram normalidade, mas algo além da compreensão humana parece comandar os acontecimentos. A tentativa final de evitar o acidente falha, e a tragédia acontece exatamente como anunciada no jornal. A estrutura narrativa reforça um ciclo fechado e inevitável.
Nota de falecimento 4
O
rádio do pequeno vagão de serviço crepitava com as primeiras
notícias do dia, sua frequência instável lançando ruídos ásperos
no ar abafado da cabine. O trem deslizava vagarosamente pelos
trilhos, como se também estivesse cansado, arrastando-se no
amanhecer que teimava em não se revelar. O céu, encoberto por um
manto pesado de escuridão, parecia estagnado no tempo—não havia
promessa de luz, apenas a sombra persistente de uma noite que se
recusava a partir.
Dentro
da cabine, Nestor ajustava seu uniforme com movimentos lentos e
desajeitados, como se cada peça de tecido pesasse o dobro. Seu
corpo, em vez de renovado pelo sono, era um emaranhado de tensões e
dores. As articulações reclamavam ao se moverem, suas pernas
estavam rígidas como se feitas de madeira velha, e seus ombros
carregavam uma fadiga que parecia ter se acumulado por décadas. Um
cansaço arrastado e interminável, o tipo que se infiltra nos ossos
e recusa qualquer alívio.
Seus
olhos insistiam em permanecer semicerrados, a luz fraca da cabine
pouco contribuindo para afastar a névoa do sono. Mas isso não
importava. O que importava eram as notícias—ou pelo menos, a
rotina de ouvi-las, como se a previsibilidade pudesse oferecer algum
consolo.
“Pane
no sistema de sinalização. Trens podem sofrer atrasos inesperados.”
Ele
soltou um resmungo, sem surpresa. Nada funcionava direito. A chaleira
no fogareiro improvisado soltava um chiado baixo, preparando um café
que prometia ser tão amargo quanto o dia que começava. Jogou uma
colherada de açúcar no fundo da xícara vazia sem sequer olhar,
como se seu próprio gesto fosse apenas mais uma repetição sem
significado.
“Incêndio
em bairro industrial. Equipes de resgate ainda buscam desaparecidos.”
Com
um suspiro pesado, Nestor ajeitou os papéis sobre a pequena mesa do
compartimento. A jornada diária parecia seguir implacável, um ciclo
repetitivo e inquietante.
Antes
de sair, pegou o jornal dobrado junto à lanterna e conferiu os
avisos locais:
"Aviso
de falecimentos: Morreu nesta madrugada por colisão ferroviária o
Sr. Nestor Almeida, com a idade de 58 anos. O sepultamento ocorrerá
no Cemitério da Paz às 20h."
Ele
engoliu seco. Um erro? Alguém com seu nome teria morrido?
Esquisito...
O
apito do trem ecoou pela vastidão da estação, um som longo e
áspero que parecia rasgar o próprio ar da manhã. Era um aviso, mas
de quê? Nestor sentiu o peso daquele som se espalhando pelo
ambiente, vibrando em seus ossos como um chamado irrefutável. Ao
abrir a porta da cabine e pisar na plataforma, um desconforto
imediato lhe percorreu o corpo—o silêncio. Era um silêncio denso,
irreal, quase sufocante. O lugar que deveria estar repleto de
movimentos frenéticos e conversas apressadas encontrava-se
imobilizado. Não havia o rodar contínuo das rodas nos trilhos, nem
o murmúrio dos passageiros, nem os anúncios de embarque
reverberando pelos alto-falantes. Tudo parecia ter sido apagado, como
se o tempo tivesse congelado aquele instante, deixando apenas ele ali
para testemunhar a estranheza.
Um
vento seco e cortante deslizou pela gare, trazendo consigo a sensação
de abandono. Nestor ergueu os olhos e viu apenas um horizonte
enevoado, indistinto, como se uma camada de cinza houvesse coberto o
mundo além dos trilhos. As bancadas de madeira estavam vazias, os
carrinhos de carga, abandonados em seus cantos. Nenhum trabalhador
circulava pelos pátios, nenhuma alma preenchia as plataformas, e
nenhum outro trem dava sinais de aproximação. Apenas o seu, imóvel,
como se aguardasse alguma sentença. Ele esfregou os olhos, tentando
dissipar a ilusão. Mas não era ilusão—era real. O vazio se
estendia por toda parte, e ele, parado ali no meio, parecia deslocado
do próprio fluxo do tempo.
Foi
então que a tranquilidade despencou, e o caos irrompeu sem aviso. Um
rugido brutal rompeu o silêncio com a força de um trovão,
reverberando como um eco monstruoso pelas estruturas metálicas da
estação. Buzinas estridentes cortaram o ar, seguidas por
gritos—gritos desesperados, afogados pelo chiar do metal se
dobrando sob uma pressão avassaladora. O chão tremeu. As placas de
ferro se torceram como papel amassado. No último instante antes do
impacto, os olhos de Nestor captaram o brilho intenso dos faróis de
um trem vindo em sentido contrário. Uma luz ofuscante. Um peso
colossal. Uma força impossível de conter. E então, sem tempo para
reação, a colisão devorou tudo.
Horas
depois, entre as notícias da manhã, o rádio ecoou na estação
deserta:
“Aviso
de falecimentos: Morreu nesta madrugada por colisão ferroviária o
Sr. Nestor Almeida, com a idade de 58 anos. O sepultamento ocorrerá
no Cemitério da Paz às 20h."
Autor: Eber Godoi
Conto que traz uma atmosfera sombria e opressiva, utilizando o ambiente ferroviário para reforçar o sentimento de desgaste e fatalidade. Forte peso simbólico, misturando o desgaste da rotina com uma premonição inquietante.
1. Atmosfera densa e exaustiva
Desde o início, o conto constrói uma sensação de cansaço e peso. O próprio trem parece estar exaurido, deslizando vagarosamente pelos trilhos. O protagonista, Nestor, carrega um esgotamento profundo—seu corpo dói, seus movimentos são lentos, e sua mente parece nublada. A escuridão persistente reforça a ideia de um dia sem perspectiva, onde até a manhã se recusa a chegar. Esse ambiente contribui para uma sensação de desânimo e inevitabilidade.
2. O rádio como elemento de premonição
O rádio desempenha um papel crucial na narrativa, funcionando como um prenúncio do que está por vir. Primeiro, ele menciona falhas na sinalização ferroviária, sugerindo que algo está errado no sistema. Em seguida, relata um incêndio e desaparecimentos, ampliando a sensação de caos crescente. O ápice acontece quando Nestor lê o aviso de falecimento com seu próprio nome no jornal, tornando claro que a narrativa caminha para um destino trágico. O rádio, portanto, age como uma voz do destino, anunciando desgraças antes mesmo que aconteçam.
3. O silêncio e o vazio como sinais da morte
Quando Nestor sai da cabine e pisa na plataforma, ele percebe um silêncio anormal. A estação, que deveria estar cheia de movimento e vida, está completamente vazia. A ausência de trabalhadores, passageiros e até de outros trens cria uma atmosfera fantasmagórica, como se o mundo tivesse parado no tempo. Essa cena reforça a ideia de que Nestor já atravessou para um espaço entre a vida e a morte—ele apenas ainda não percebeu isso.
4. O ciclo inevitável da morte
O conto utiliza uma estrutura cíclica poderosa: começa com Nestor ouvindo notícias no rádio e termina com o rádio anunciando sua própria morte. Esse formato transmite a ideia de que a morte é uma engrenagem inevitável, que já estava anunciada antes mesmo do acidente acontecer. A colisão ferroviária não é apenas um evento físico, mas um destino selado. A fatalidade da narrativa torna-se ainda mais evidente quando, após o impacto, o rádio simplesmente confirma o ocorrido—como se fosse apenas mais uma notícia rotineira.