NOTA DE FALECIMENTOS




Nota de Falecimentos 1

O rádio ligado dava as primeiras notícias do dia, e um resumo dos acontecimentos do dia anterior. Antenor, meio grogue de uma noite mau dormida, lutava para desempenhar os movimentos do corpo corretamente.
Os olhos não queriam abrir de jeito nenhum, mas não interessa. Lutava por escutar suas notícias costumeiras de todas as manhãs.
Vestiu a roupa de trabalho sentindo dores nas pernas e costas, como se a noite de descanso o tivesse petrificado. Meio manco, meio tonto, mais tateando do que se guiando, foi para o banheiro ver se acordava os outros membros de uma vez por todas.

Assalto ao banco da cidade: explosão foi de madrugada!”

Botou a cafeteira pra passar o café grunhindo – não vou poder tirar o dinheiro de novo!? - Arrumou a mesa para tomar o café. Algumas bolachas, pão já meio firme de dois dias, margarina e uma caixa de leite.

A madrugada foi movimentada no Hospital das Clínicas daqui da cidade, dos vinte e cinco que deram entrada, sete chegaram em óbito”.

Com a cabeça meio baixa e balançando em reprovação, Antenor senta na cadeira pesadamente, mais pra desabando sobre ela, novamente grunhindo – primeiro o banco explode, agora gentarada morrendo antes de chegar no hospital (como se morrendo lá dentro fizesse diferença), não tem notícia boa, não? - Toma o primeiro gole de café. Amargo! Esqueceu de adoçar.
Sai da mesa ainda mastigando o pão sem margarina, pega a mochila de trabalho jogando nas costas, solta um gemido miúdo olhando a rua de todos os dias. As pessoas indo trabalhar. As pessoas indo fazer compras. As pessoas com seus carros indo e vindo. A vida a mesma sempre, na mesma coisa, no mesmo ritmo, mas congelada, no tempo. - Será que é assim que se morre? - Nota que o dia começa escuro, as luzes das ruas estão acesas, como se ainda fosse noite.
Pensa que no inverno o sol nasce mais tarde, talvez, mas não estamos no inverno! Ou será que as nuvens estão tão densas, tão escuras pra chuva, que a manhã parece noite? Também não, pois o céu esta tão negro que não vê nuvem alguma. Para de olhar o céu e contempla o bairro em volta. Tudo calmo. As pessoas se foram, os carros sumiram, o barulho de movimento constante das coisas emudeceu. Tudo está quieto e parado. Na mesma velocidade que se moviam, sumiram.
Começa a fechar a porta para sair de casa e detem-se para ouvir o rádio:

Atenção. Aviso de falecimentos. Morreu nesta madrugada por queda de nível o Sr. Ildo Franco, com a idade de 43 anos, será sepultado no cemitério Nova Fronteira ás 19:00 Horas. Morreu nesta madrugada a Sra. Dalurdes da Luz, com a idade de 28 anos por intoxicação e será velada no cemitério Águas Brandas ás 19:30 horas. Morreu nesta madrugada, por esfacelamento de crânio o Sr. Antenor Vieira Antoniello, com a idade de 55 anos, será sepultado ás 20:00 horas no Cemitério Municipal...”

Era só o que faltava para aquela manhã esquisita. Alguém com seu nome morrera durante a madrugada. Como é esquisito ouvir o anúncio da sua própria morte..., mas claro que está vivo. Com mochila nas costas, gosto de café amargo na boca, na porta de uma casa vazia, indo pro trabalho, morrendo de sono e olhando para um dia que começa breu como uma noite.
Tranca a porta, dá um suspiro como se fosse o último daquele momento, momento sublime por assim dizer pois, no momento que pisasse na rua, sabia que o caos começaria e não mais teria fim até que baixasse a tarde e enfim mais uma noite de sublimidade calmaria. Com a coragem de uma máquina, avança a passos largos pra sina que lhe espera...
A escuridão começa a tomar cor acima no céu, púrpura na abóbada e prateada no horizonte. A medida em que os minutos avançam, o dia vem se revelando cada vez mais majestoso, potente, trazendo de arrasto a presente realidade consigo. Carros rosnando e fumegando saindo das garagens, gente fechando portões, gritando algo para alguém por alguma coisa, ruas lotadas na confusão de carne e metal numa guerra sanguinária e bruta por direito de espaço.
Um carro manobra com certa violência de seu pátio apertado, ao lado uma casa de madeira antiga mas bem feita. Passa pelo portão já aberto e não se importa se ela vai ficar assim ou será fechado. Avança para a rua sem diminuir a velocidade, antes aumentando, aproveitando o espaço dado pelos veículos que vem a uma certa distância. Vira e acelera. Um baque seco e alto joga o corpo acima da capota. O veículo ainda demora alguns momentos para parar de vez. Os outros carros logo atrás são pegos de surpresa e também não param a contento, tentando desviar do corpo, batendo e se esfregando uns aos outros. Uma caminhonete, preocupada com sua reta inexorável, não percebe a tempo o que acontece e passa com os rodados direito em cima da cabeça da pessoa.
As 05:10 da entrada no hospital. As 05:27 é constatada morte encefálica por esfacelamento. As 07:00 o IML, Instituto Médico Legal autoriza o hospital a anunciar o falecimento a amigos e familiares. Como não são encontrados, o aviso vai ser feito junto aos demais falecidos durante aquela madrugada num veículo de comunicação da cidade: o rádio.

Atenção! Aviso de falecimentos: Morreu nesta madrugada por queda de nível o Sr. Ildo Franco, com a idade de 43 anos, será sepultado no cemitério Nova Fronteira às 19:00 Horas. Morreu nesta madrugada a Sra. Dalurdes da Luz, com a idade de 28 anos por intoxicação e será velada no cemitério Águas Brandas às 19:30 horas. Morreu nesta madrugada, por esfacelamento de crânio o Sr. Antenor Vieira Antoniello, com a idade de 55 anos, será sepultado às 20:00 horas no Cemitério Municipal...”

Autor: Eber Godoi

Esse conto é profundamente reflexivo e impactante, trazendo elementos de surrealismo e crítica social, deixando uma sensação de impotência e inevitabilidade, mas também um espaço para interpretações filosóficas.
    1. Atmosfera sombria e opressiva
      • O texto constrói uma sensação de peso e desgaste, refletida na rotina de Antenor e no tom melancólico das notícias matinais.
      • A escuridão persistente reforça a ideia de uma realidade sufocante, como se a vida estivesse estagnada.
    2. Morte e realidade distorcida
      • O ápice do conto ocorre quando Antenor escuta seu próprio nome no aviso de falecimentos, criando um choque narrativo.
      • Essa dualidade entre estar vivo e morto coloca o personagem em um limbo existencial, questionando o significado da sua própria rotina.
    3. Crítica à banalização da tragédia
      • As notícias no rádio abordam mortes, violência e caos como se fossem acontecimentos comuns.
      • Isso pode sugerir uma sociedade que se acostumou com o absurdo e a brutalidade, perdendo a sensibilidade diante da dor.
    4. Estrutura cíclica
    • O conto começa com Antenor ouvindo notícias e termina com o rádio novamente anunciando falecimentos, reforçando a ideia de repetição.
    • Esse fechamento sugere que a vida continua implacável, indiferente ao destino do indivíduo.


Nota de Falecimentos 2

No trabalho, Amadeu discute com o colega:
Ora, Amadeu! Joga fora isso! Pra mim é lixo.
Tô te falando, homem. Esse toco de papel voou no meu pé esses dias atrás e não desgrudou mais de mim.
Claro que desgrudou. Tanto é que está no seu bolso agora, e não grudado no sapato como contou esses dias.
Eu contei que veio voando atrás de mim. Me perseguindo!!
Claro, se o vento está te acompanhando qualquer papel vai atrás de você, besta.
Não xinga que o caso é sério..., depois vai ter que me procurar lá no além pra pedir desculpa.
Não vem com essa, Amadeu. Você contou o seu casinho intimo com o toco de papel na hora do almoço, diante da peãozada inteira da fábrica. Tá todo mundo tirando sarro. Se for desse jeito, vai ter um batalhão enorme procurando você no outro mundo, cara.
Você fala como se eu já estivesse lá, assim, na maior naturalidade?
E você, que contou lá na mesa do refeitório, com trezentos e cinquenta peão entrando e saindo, assim, na maior naturalidade?
É que eu estava nervoso.
Reparei. Falou alto pra caramba, meu!
Mas me diga, você. Se tivesse que desviar dum papelzinho chato que não para de rodear tua cabeça a todo instante. Daí você se enerva e resolve correr do tal papel para tomar uma distância, e descobre que ele vem atrás sem ao menos dançar no ar, como deveria ser quando está ventando, como agiria?
Se você estava correndo, com certeza teve que olhar correndo, prestar atenção onde pisava correndo, cuidando para não bater nas pessoas a sua volta, “correndo”. É claro que não via o papel com muita atenção. Seus olhos te enganaram...
Não tinha como. Ele me persegui a dois palmos da minha cabeça.
Não era nos pés?
Também.
Explica!
O quê, bolas.
Primeiro vinha voando atrás de você, depois te perseguia na cabeça, aí passou a voar baixinho nas pernas, até que grudou no sapato...
Você tá embolando tudo. Essa última parte de voar nas pernas não falei não.
Então tá mentindo. Não tá vendo que não tem lógica alguma?
Vô falá de novo, tá. Ele me perseguiu, mesmo eu correndo com tudo, a uns dois palmos da minha cabeça. Deu umas três voltas em torno como se fosse mosca num lixo. Como eu tentava dar tapas naquele ser do outro mundo, ele passou a grudar aonde encostava. Me grudou nas costas. Tirei a camisa e sacudi ali mesmo, na rua. Foi pras pernas. Dei tapa de toda maneira. Veio nos braços, depois na cabeça.
E o povão da rua?
Era só gargalhada, cara. Só que eu mostrava o papel me atacando feito vespa braba, e ninguém via nada.
E os que estava mais perto?
Pois era justamente pra esse que eu falava, apontava, gritava mostrando, e nada. Ficavam olhando pra cima, pros lados, com a cara perdida até que caiam na gargalhada dizendo que um louco tava dançando ali.
E quando é que parou essa loucura toda?
Quando eu caí de cansaço, estirado no chão. Veio flutuando bem mansinho e grudou na ponta do meu sapato. Não saiu mais. Quando cheguei em casa, fui logo tirando os calçados. Mais por meus pés estarem em fogo de tanta canseira. Andei o dia todo e ainda tive de dançar uma meia hora de sapateado com aquele papel. Realmente não via a hora de tirar os calçados dos pés. Mas adivinhe! Quando puxei o sapato em que o miserável estava grudado, ele desgrudou bem de leve e veio pro meu dedão do mesmo pé. Então tirei a meia, pois ele de novo, desgrudou da ponta da meia e veio mansamente na minha mão.
Você aproveitou a ocasião, Amadeu?
Que ocasião?
Mas tu é burro mesmo, Amadeu. A ocasião de amassar o miserável, jogar no lixo, queimar, sei lá, aproveitar...
Bem, quando tomei consciência que estava com aquela coisa na mão, algo me dizia que não era nada do que eu via. Era como se segurasse um ser vivo entre meus dedos.
Tá louco?
Tinha escritas no papel. Quando notei a textura e as letras é que percebi que segurava um retalho de jornal velho. Meio amassado, meio amarelado, mais ou menos um palmo de tamanho, e cheirava esquisito. Tinha um título em negrito com letras grandes que não terminava por causa do rasgado: “Nota de falecim...”. Embaixo do título havia um monte de nomes de pessoas falecidas, as esposas ou maridos, filhos e filhas, e o local do enterro de cada um deles.
Agora fala o que tem demais nisso!
Simples, amigo! Um dos nomes era o meu!
Oras bolas, Amadeu! Quantos nomes iguais existem por aí? Leu o teu num toco de jornal e já surtou?
Eu não li “só o meu nome”, cara! Tava lá o nome da minha mulher, das minhas duas filhas, a minha idade, e o local do meu sepultamento, acredita!?
Não.
Pois trate de acreditar, amigo. Pois estou sendo enterrado neste exato momento lá no cemitério central. O que eu queria mesmo é me despedir de um amigo. Você, Eduardo!
Nesse momento a imagem do colega Amadeu começa a desfocar, depois fica transparente, e como uma névoa fraca vai sumindo bem devagarzinho, até que não resta mais nada. Tudo acontecendo diante dos olhos esbugalhados do desesperado e incrédulo Eduardo.
Como que acordando de um pesadelo, atira os braços para cima num grito seco e curto caindo de costas no chão da fábrica.
Os colegas em volta vem acudir. Está aos berros falando tudo errado sem conseguir organizar as imagens que lhe passam pela cabeça.
Quando perguntaram do Amadeu, tudo que pode dizer é que estava sendo enterrado no cemitério central. Alguns correram telefonar para o cemitério a fim de certificar se era verdade, enquanto outros foram pro vestiário verificar se a roupa no armário do Amadeu tinha sido mexida, ou usada. Dupla surpresa! A funerária no cemitério confirmou o nome de Amadeu Lopes Nuenze sendo sepultado naquele momento. Os operários encontraram o armário do Amadeu vazio. Alguém tinha vestido seu uniforme.
A algazarra foi tamanha, que a empresa desligou os maquinários e pediu calma aos peões. O gerente geral com uma comitiva de encarregados de setores foram, cada um com seu veículo, ou de carona, até o cemitério averiguar o ocorrido, uma vez que o cartão ponto daquele funcionário estava batida sua entrada pela manhã.
Ao chegarem, foram até o local onde estavam fechando a tampa do caixão do suposto funcionário..., surpresa geral! O Amadeu estava dentro do caixão com o uniforme da empresa.
Ninguém teve coragem de parar o férito.
Baixaram o caixão na cova e jogaram terra em cima.
Enquanto isso, lá na empresa, sozinho o Eduardo lia um toco de jornal velho, que com a queda do seu susto, acabou achando jogado no chão:

Nota de falecim...
Faleceu hoje com a idade de 38 anos o senhor Amadeu Lopes Nuenze, de mal súbito. Deixa esposa Maria Franca Nuenze, Filhas Emanda Nuenze e Serina Nuenze. Sepultamento no cemitério central.
(…) - depois de mais algumas notas...
Faleceu hoje com a idade de 41 anos o senhor Eduardo Costa Ribamar, de mau súbito. Deixa esposa Maria Costa Ribamar, filhos: Celina Ribamar e Emanuello Ribamar. Sepultamento no cemitério central."
Eduardo cai duro, de mal súbito.

Autor: Eber Godoi 

Esse conto é envolvente e perturbador, misturando elementos de realismo, absurdo e terror psicológico. Conto que brinca com a fragilidade da realidade e do destino, criando um clima de tensão e surpresa.

1. Mistério e surrealismo

O conto começa com uma situação cotidiana—dois colegas conversando no trabalho—mas rapidamente evolui para algo surreal. O papel misterioso que persegue Amadeu desafia as leis da física e da lógica, criando uma sensação de desconforto crescente. Esse elemento sobrenatural contrasta com o ambiente comum de uma fábrica, tornando a revelação ainda mais impactante.

2. O papel como símbolo do destino

O papel que insiste em seguir Amadeu pode ser interpretado como uma representação do destino inevitável. Ele começa como um objeto banal, mas aos poucos se transforma em algo sinistro, carregando a premonição da morte. Essa metáfora é reforçada quando se descobre que o papel contém uma nota de falecimento com os nomes de Amadeu e sua família. É como se a morte estivesse marcada no papel antes mesmo de acontecer.

3. O medo do invisível e da loucura

Ninguém além de Amadeu vê o papel se mover de forma sobrenatural, o que gera uma sensação de isolamento e descrença por parte dos colegas. Isso remete ao medo da loucura—quando alguém percebe algo que os outros não veem, sua sanidade é questionada. O conto brinca com essa ideia ao deixar em aberto se o fenômeno era realmente paranormal ou apenas um delírio de Amadeu.

4. Estrutura cíclica e fatalismo

A revelação final, em que Eduardo encontra seu próprio nome no papel, reforça a ideia de um ciclo inevitável. A morte anunciada no papel se concretiza, e o mesmo destino parece se repetir com Eduardo. Isso gera uma atmosfera de inevitabilidade, onde o destino dos personagens já está selado, sem possibilidade de fuga. A forma como o conto termina abruptamente com Eduardo caindo de mal súbito reforça esse caráter trágico e inescapável.


Nota de falecimento 3

Na televisão, o jornalista exibe um jornal que mostra em detalhes a reportagem de uma tragédia que choca seus ouvintes:

O avião que caiu transportava 386 passageiros mais 30 tripulantes. Não houve sobreviventes...”

09:45 AM - Na caixa preta, falas do comandante com uma aeromoça:

Que você está dizendo? Uma nota do jornal diz que este avião caiu?
Sim, comandante. Eu vi grudado lá no jornal uma nota de falecimento enorme com foto, e tudo mais.
Volte para suas funções e atenda os passageiros. Agora!
Quem ouve imagina que a aeromoça responde com um aceno de cabeça e volta para dentro da nave, com um sorriso amável e mal ensaiado no rosto.

10:17 AM - A caixa preta não registra mais nada por cerca de meia hora. Dando a impressão de que os pilotos haviam saído da cabine. Ouve-se uma voz no rádio interno da cabine:

Comandante. Acho que deveria vir aqui controlar o indivíduo! Está chamando muita atenção dos demais passageiros.
Peça ajuda à comissária de bordo. Diga-lhe que se não calar vamos prendê-lo! Não posso sair daqui do controle do avião toda vez que alguém surtar aí dentro.
Uma voz feminina houve-se ao fundo como se estivesse se afastando. Outra voz vem chegando no mesmo momento.
Capitão! Lembra que te falei uma meia hora atrás, que tinha visto uma reportagem do nosso avião ter caído? Pois o homem enlouquecido lá dentro é quem está com o jornal.
Co-piloto, assuma o controle. Vou verificar o que está ocorrendo. Se for qualquer tipo de gracinha, serei obrigado a prender aquele sujeito.

10:40 AM - Passam-se vinte e três minutos de silêncio na caixa preta.

Dê uma olhada neste jornal, cara! Tem um pedaço enorme de um jornal velho e rasgado colado numa das páginas. Não vá surtar igual aquele sujeito, viu?
O que fizeram para acalmá-lo?
Dei uma injeção de sedativo. Está dormindo feito bebezinho. Largamos ele na próxima escala.
- Veja comandante! Parece que o pedaço de jornal está coladíssimo na folha do jornal novo!?
Alguém deve ter colado aí para fazer sacanagem. Pode ser o próprio artista que está dormindo agora.
As aeromoças estão nervosas. Uma delas leu duas vezes a reportagem. O jornal passou de mão em mão lá na tripulação e os passageiros estão sentindo o nervosismo geral. Acho que temos que acalmá-los de algum jeito, comandante.
Já sei o que fazer. Ligue o rádio interno. Vou falar com todos:

– “Senhoras e senhores passageiros: um homem começou um alvoroço por causa de um pedaço rasgado de jornal velho, contendo suposta reportagem de um avião caído. Asseguro a todos que estamos voando bem, clima e vento lá fora tranquilo e favorável. Nave em prefeitas condições. Não se deixem levar por pessoas perturbadas e desqualificadas que eventualmente aparecem no nosso meio. Aproveitem a viagem com satisfação e alegria da aventura. Obrigado!”

Agora pegue esse miserável de jornal e vá jogar no vaso do banheiro.
Sim senhor! Agora mesmo!

10:48 - Houve-se um barulho de jornal sendo amassado e a porta da cabine abrindo e fechando em seguida.

11:13 - Alguns minutos depois o co-piloto volta. Barulho da porta novamente sendo destrancada, possivelmente pelo comandante. A porta é trancada novamente.

Joguei...
O que foi?
É, bem...
O que foi? Tem alguma coisa te incomodando?
É que eu li o jornal. Não aguentei de curiosidade.
Não acredito. Agora vai me dizer que também está dando crédito ao jornal podre?
Talvez...
Sabe de uma coisa? Vou tomar café. Pretendo continuar sóbrio quando você e o resto da tripulação enlouquecer.

11:43 - Silêncio novamente. Depois começou uns barulhos da porta da cabine. Alguém saindo, entrando, saindo, entrando, palavrão, saindo novamente. Durante esse tempo todo, o avião permaneceu no piloto automático.
Uma pessoa entra ofegante na cabine, mexe nos aparelhos. Liga o rádio para se comunicar com a torre. Ouve-se batidas insistentes na porta. Desiste do rádio e sai da cabine. A porta da cabine abre com estrondo. A voz da comissária de bordo está nervosa:

Capitão! Não sei mais o que fazer para controlar os ânimos lá dentro. Parece que todos os passageiros leram sobre aquele anúncio do jornal! Nunca lidei com tamanha confusão.
Pelo que vejo vamos ter que tomar outra providência, e rápido! Peça ajuda aos teus colegas lá dentro, de preferência “todos” da tripulação, e joguem no vazo do banheiro “todos” os jornais que encontrar. Seja particular ou não. Seja de uso da companhia ou não. Confisquem “todos” os jornais dentro deste avião. Expliquem aos usuários que é por medida de segurança, já que o mesmo está alterando os ânimos de “todos” dentro da nave.
Torre para 747-8, D-ABYA responda.
Aqui Thansa-line, prefixo D-ABYA na escuta.
Estamos perdendo sinal em espaços regulares, queira confirmar contato.
Todos os instrumentos OK. Rádio OK. Nave em perfeitas condições. Alguma preocupação?
Sim. O radar não captou seu prefixo em alguns pontos do trajeto. Poderia confirmar alguma anomalia?
Não. Sem confirmação. Não está havendo anomalia alguma. Nem elétrica, nem mecânica. Atmosfera limpa, sem incidência magnética ou do tipo.
Percebemos perda de sinal ás 10:48 AM, e depois rareou de meia em meia hora mais ou menos. Confirma?
Não. Nossos instrumentos operam normalmente. O sinal transmitido pela torre está OK. Qualquer variação informe, certo?
Certo. Estaremos atentos.

12:15 PM – A voz no rádio interno da cabine informa:
Comandante! Já confisquemos todos os jornais da Classe Econômica. Muitos se mostraram irredutíveis e irritadíssimos quanto a ideia, mas dos 298 passageiros, 227 tinham jornais consigo.
E quantos sabiam da notícia maluca?
Todos!
Agora vão para a primeira classe. A First Class é a mais irritante e perigosa das “ne me touchez pas, (não me toque).Muito jeito está bem?
Nos deseje boa sorte.

12:30 PM – Aviso na porta da cabine indicando alguém do lado de fora. Uma comissária entra ofegantemente disfarçada:

O senhor precisa ver aquilo! A Classe Econômica está em polvorosa! Todos estão falando alto, berrando uns com outros! Tentei entender a gritaria e o que consegui é que tem gente afirmando que o tal jornal está passando pelo lado de fora do avião. Alguns estão até batendo e grudando nas janelas.
Passando!? Como assim, passando? Tem jornal voando lá fora do avião nesta altura?
Senhor. Acho que estamos na beira de uma histeria coletiva. Não acho outro argumento que explique isso.
E os jornais da 1ª classe?
Todos recolhidos a muito custo. Estão se reunindo para processar a empresa.
Isso ja era esperado. Ainda bem que são só oito.
Oito podres da grana, comandante...!
Agora vão lá para o Business. Se deram conta de oito mega-chatos, darão conta de oitenta médios-chatos. Enquanto isso vou tentar acalmar os ânimos dos mais oprimidos.

13:13 – Pelo som registrado na caixa preta, toda a tripulação se dirigiu até a primeira classe e está em frente a porta da cabine. Todos falando ao mesmo tempo. Muito difícil entender alguma fala naquela confusão de vozes. Uma voz mais próxima falou alto e apavorado. Era a do co-piloto:

Comandante, o que é aquilo? O jornal está no vidro da cabine!
Não pode ser! Como é que grudou ali?
Veja, comandante! É impressão minha, ou ele está dentro dos vidros?
Sim! Você está certíssimo para o meu desespero, homem. Esse maldito jornal está entre PVB (poly vinyl butyral) e os vidros do para-brisa! Ei! O que está acontecendo?
O avião inclinou 12 graus!
Veja a velocidade...
Normal, comandante.
As asas! Como estão os spoilers, os estabilizadores?
Tudo perfeito. Não a nada de errado com o avião! Atenção, 32 graus e continua inclinando.
Mas o que está havendo? Veja pressão atmosférica, sistemas elétricos. Tem que ter alguma coisa. Continue tentando subir. Vou falar com a tripulação e com os passageiros.

Atenção todos. Tripulantes e passageiros. O nosso avião está sofrendo uma leve inclinação. Por gentileza, queiram permanecer sentados e pôr seus cintos. Se acontecer do aparelho inclinar demais, pode haver variação de pressão e as máscaras cairão para seu melhor conforto. Mas não a nada para se preocupar nem que possa ser de alarme. Obrigado.

13:17 – Ao fundo pode-se ouvir a confusão generalizada que começa tomar corpo. O comandante tenta entrar em contato com a torre de comando mas, não ha sinal algum.

Mayday, Mayday para torre. 747-8 prefixo D-ABYA, responda!
Estamos com 44 graus e inclinando , senhor!
Mayday! Nosso avião está sendo puxado para baixo. Mayday pelo amor de Deus!!!
O avião não está obedecendo comandante. Está tudo certo e não sobe!
Vamos puxar o manche com força, agora!

A caixa preta começa a emitir barulhos de interferência na gravação. Depois de alguns estalos, uma voz gritando com incrível nitidez:
É este maldito jornal! Está puxando a aeronave para baixo! Ele vai ter que sair dali agora mesmo!
Não! Não faça isso, homem! Está louco?

13:33 – Um barulho alto de objeto se chocando contra vidro, barulho de estilhaços, vozes de dois homens gritando. Um ronco ensurdecedor de vento entrando na cabine em meio às vozes do piloto e do co-piloto que tentam se fazer ouvir aos berros:
Comandante! O avião está declinando dos 87 graus!
Não vai dar tempo. Estamos perto demais do mar! Prepare-se para o impacto!

Na televisão, o jornalista exibe um jornal que mostra em detalhes a reportagem de uma tragédia que choca seus ouvintes:

O avião que caiu transportava 386 passageiros mais 30 tripulantes. Não houve sobreviventes. A Empresa Thansa-line postou uma nota de condolências e outra de falecimento com todos os mortos envolvidos...

Autor: Eber Godoi

Envolvente e inquietante, misturando elementos de suspense, horror psicológico e tragédia. Combina mistério, terror e tragédia, criando um impacto psicológico crescente e intenso.

1. O jornal como presságio e símbolo do inevitável

O conto utiliza um objeto cotidiano—um jornal—para transformar uma situação aparentemente comum em algo sobrenatural. A existência de uma reportagem detalhada sobre um desastre que ainda não aconteceu cria um forte elemento de premonição. A medida que a história avança, o jornal se torna cada vez mais sinistro, afetando a tripulação e os passageiros, até se integrar fisicamente à aeronave, reforçando sua influência sobre o destino do voo.

2. O impacto da histeria coletiva

À medida que mais pessoas tomam conhecimento da notícia macabra no jornal, a tensão aumenta. O comandante tenta minimizar o pânico, mas o medo se espalha rapidamente. Os passageiros entram em desespero, acreditando no destino já selado do avião. A histeria coletiva é um dos temas centrais do conto, mostrando como o medo irracional pode se expandir até comprometer o controle de uma situação crítica.

3. Estrutura em formato de registros da caixa preta

O uso de marcações temporais e trechos de diálogos registrados na caixa preta aumenta a sensação de realismo, criando um ritmo acelerado e fragmentado. Esse recurso contribui para a imersão do leitor, dando a impressão de que está acompanhando o desenrolar dos eventos através de gravações oficiais. Esse formato também enfatiza o horror crescente, pois revela em tempo real os momentos de tensão extrema antes da tragédia.

4. Fatalismo e a impossibilidade de escapar do destino

Desde o início, o conto sugere que a queda do avião já está predeterminada. O comandante tenta manter o controle, mas percebe que tudo leva para um desfecho inevitável. A aeronave começa a inclinar, os sistemas mostram normalidade, mas algo além da compreensão humana parece comandar os acontecimentos. A tentativa final de evitar o acidente falha, e a tragédia acontece exatamente como anunciada no jornal. A estrutura narrativa reforça um ciclo fechado e inevitável.



Nota de falecimento 4

O rádio do pequeno vagão de serviço crepitava com as primeiras notícias do dia, sua frequência instável lançando ruídos ásperos no ar abafado da cabine. O trem deslizava vagarosamente pelos trilhos, como se também estivesse cansado, arrastando-se no amanhecer que teimava em não se revelar. O céu, encoberto por um manto pesado de escuridão, parecia estagnado no tempo—não havia promessa de luz, apenas a sombra persistente de uma noite que se recusava a partir.

Dentro da cabine, Nestor ajustava seu uniforme com movimentos lentos e desajeitados, como se cada peça de tecido pesasse o dobro. Seu corpo, em vez de renovado pelo sono, era um emaranhado de tensões e dores. As articulações reclamavam ao se moverem, suas pernas estavam rígidas como se feitas de madeira velha, e seus ombros carregavam uma fadiga que parecia ter se acumulado por décadas. Um cansaço arrastado e interminável, o tipo que se infiltra nos ossos e recusa qualquer alívio.

Seus olhos insistiam em permanecer semicerrados, a luz fraca da cabine pouco contribuindo para afastar a névoa do sono. Mas isso não importava. O que importava eram as notícias—ou pelo menos, a rotina de ouvi-las, como se a previsibilidade pudesse oferecer algum consolo.

Pane no sistema de sinalização. Trens podem sofrer atrasos inesperados.”

Ele soltou um resmungo, sem surpresa. Nada funcionava direito. A chaleira no fogareiro improvisado soltava um chiado baixo, preparando um café que prometia ser tão amargo quanto o dia que começava. Jogou uma colherada de açúcar no fundo da xícara vazia sem sequer olhar, como se seu próprio gesto fosse apenas mais uma repetição sem significado.

Incêndio em bairro industrial. Equipes de resgate ainda buscam desaparecidos.”

Com um suspiro pesado, Nestor ajeitou os papéis sobre a pequena mesa do compartimento. A jornada diária parecia seguir implacável, um ciclo repetitivo e inquietante.

Antes de sair, pegou o jornal dobrado junto à lanterna e conferiu os avisos locais:

"Aviso de falecimentos: Morreu nesta madrugada por colisão ferroviária o Sr. Nestor Almeida, com a idade de 58 anos. O sepultamento ocorrerá no Cemitério da Paz às 20h."

Ele engoliu seco. Um erro? Alguém com seu nome teria morrido? Esquisito...

O apito do trem ecoou pela vastidão da estação, um som longo e áspero que parecia rasgar o próprio ar da manhã. Era um aviso, mas de quê? Nestor sentiu o peso daquele som se espalhando pelo ambiente, vibrando em seus ossos como um chamado irrefutável. Ao abrir a porta da cabine e pisar na plataforma, um desconforto imediato lhe percorreu o corpo—o silêncio. Era um silêncio denso, irreal, quase sufocante. O lugar que deveria estar repleto de movimentos frenéticos e conversas apressadas encontrava-se imobilizado. Não havia o rodar contínuo das rodas nos trilhos, nem o murmúrio dos passageiros, nem os anúncios de embarque reverberando pelos alto-falantes. Tudo parecia ter sido apagado, como se o tempo tivesse congelado aquele instante, deixando apenas ele ali para testemunhar a estranheza.

Um vento seco e cortante deslizou pela gare, trazendo consigo a sensação de abandono. Nestor ergueu os olhos e viu apenas um horizonte enevoado, indistinto, como se uma camada de cinza houvesse coberto o mundo além dos trilhos. As bancadas de madeira estavam vazias, os carrinhos de carga, abandonados em seus cantos. Nenhum trabalhador circulava pelos pátios, nenhuma alma preenchia as plataformas, e nenhum outro trem dava sinais de aproximação. Apenas o seu, imóvel, como se aguardasse alguma sentença. Ele esfregou os olhos, tentando dissipar a ilusão. Mas não era ilusão—era real. O vazio se estendia por toda parte, e ele, parado ali no meio, parecia deslocado do próprio fluxo do tempo.

Foi então que a tranquilidade despencou, e o caos irrompeu sem aviso. Um rugido brutal rompeu o silêncio com a força de um trovão, reverberando como um eco monstruoso pelas estruturas metálicas da estação. Buzinas estridentes cortaram o ar, seguidas por gritos—gritos desesperados, afogados pelo chiar do metal se dobrando sob uma pressão avassaladora. O chão tremeu. As placas de ferro se torceram como papel amassado. No último instante antes do impacto, os olhos de Nestor captaram o brilho intenso dos faróis de um trem vindo em sentido contrário. Uma luz ofuscante. Um peso colossal. Uma força impossível de conter. E então, sem tempo para reação, a colisão devorou tudo.

Horas depois, entre as notícias da manhã, o rádio ecoou na estação deserta:

Aviso de falecimentos: Morreu nesta madrugada por colisão ferroviária o Sr. Nestor Almeida, com a idade de 58 anos. O sepultamento ocorrerá no Cemitério da Paz às 20h."

Autor: Eber Godoi


Conto que traz uma atmosfera sombria e opressiva, utilizando o ambiente ferroviário para reforçar o sentimento de desgaste e fatalidade. Forte peso simbólico, misturando o desgaste da rotina com uma premonição inquietante.

1. Atmosfera densa e exaustiva

Desde o início, o conto constrói uma sensação de cansaço e peso. O próprio trem parece estar exaurido, deslizando vagarosamente pelos trilhos. O protagonista, Nestor, carrega um esgotamento profundo—seu corpo dói, seus movimentos são lentos, e sua mente parece nublada. A escuridão persistente reforça a ideia de um dia sem perspectiva, onde até a manhã se recusa a chegar. Esse ambiente contribui para uma sensação de desânimo e inevitabilidade.

2. O rádio como elemento de premonição

O rádio desempenha um papel crucial na narrativa, funcionando como um prenúncio do que está por vir. Primeiro, ele menciona falhas na sinalização ferroviária, sugerindo que algo está errado no sistema. Em seguida, relata um incêndio e desaparecimentos, ampliando a sensação de caos crescente. O ápice acontece quando Nestor lê o aviso de falecimento com seu próprio nome no jornal, tornando claro que a narrativa caminha para um destino trágico. O rádio, portanto, age como uma voz do destino, anunciando desgraças antes mesmo que aconteçam.

3. O silêncio e o vazio como sinais da morte

Quando Nestor sai da cabine e pisa na plataforma, ele percebe um silêncio anormal. A estação, que deveria estar cheia de movimento e vida, está completamente vazia. A ausência de trabalhadores, passageiros e até de outros trens cria uma atmosfera fantasmagórica, como se o mundo tivesse parado no tempo. Essa cena reforça a ideia de que Nestor já atravessou para um espaço entre a vida e a morte—ele apenas ainda não percebeu isso.

4. O ciclo inevitável da morte

O conto utiliza uma estrutura cíclica poderosa: começa com Nestor ouvindo notícias no rádio e termina com o rádio anunciando sua própria morte. Esse formato transmite a ideia de que a morte é uma engrenagem inevitável, que já estava anunciada antes mesmo do acidente acontecer. A colisão ferroviária não é apenas um evento físico, mas um destino selado. A fatalidade da narrativa torna-se ainda mais evidente quando, após o impacto, o rádio simplesmente confirma o ocorrido—como se fosse apenas mais uma notícia rotineira.