terça-feira, 4 de agosto de 2015

Macumba pro Lobisomem

 Uma coisa que ninguém sabe é que Piên já teve bruxa, não aquelas feiosas verruguentas, comedoras de criancinhas, ou as importadas que voam de vassouras com chapelões enormes, mas uma velha até que bem simpática procurada por muita gente.
Procuravam dona Grena Machado para as mais variadas situações. Desde tirar quebrante de neném, arranjar namorados bonitões para as moças faceiras até esconjurar pragas das plantações dos colonos desesperados e espantar “encostos” de pessoas ou residências, desses espíritos grudentos que quando agarram no pé da gente, não largam mais.
Dona Grena, ouvia-se falar, tinha algumas irmãs espalhadas pela região: dona Grena Ponta-Aguda morou em Agudos, dona Grena Tapuia próximo de Quitandinha, dona Grena Matados era muito afamada em Lajeado dos Mortos, mas foram sumindo sem que ninguém soubesse explicar para onde foram ou o que aconteceu.
A velhinha morava sozinha e a maioria dos seus despachos ou trabalhos fazia em casa, recebendo todos ali mesmo como se fosse consulta médica, por isso nunca se ausentava de casa, somente quando precisava comprar alguma coisa na feira é que saia, mas voltava rapidinho.
Sua adorável companhia de todo dia era uma cachorrada sem fim. Muitos mesmo! A matilha era enorme e todos vira-latas, mas muitíssimos obedientes à sua dona que nunca se esquecia de dar restos de comidas com animais pequenos descarnados misturados a ossos. Sempre havia muito osso para a cachorrada.
Dona Grena Machado começou a ficar preocupada com seus companheiros de estimação, porque na hora de comer, seja durante a tarde ou à noite alta, faziam um alarido danado latindo e correndo como desesperados, além de que ela notava que emagreciam a cada dia. Reclamou para seu compadre, que lhe era de muita estima. Este estava sempre por ali prestando algum servicinho em favor de fumo ou dum bom papo com dona Grena, principalmente quando o assunto era sobre seus trabalhos de magia, que cá entre nós, chamaremos de simpatias simpáticas, está certo?
A única coisa que ouviu como resposta ao assunto foi que os animais são barulhentos mesmo, e só. Ficou assim.
Certo dia, dona Grena fez uma experiência. Colocou bastante osso em meio à comida e levou lá para o meio da estrada onde era o lugar mais limpo de mato e bem iluminado pela lua para poder ver bem o que acontecia e ficou vigiando. Enquanto a cachorrada comia, veio saindo do mato, do outro lado da estrada, um cachorrão enorme, extremamente peludo e orelhudo, garras compridíssimas e passos lentos. À medida que foi se aproximando da comida os cachorros foram se afastando e deixando tudo para ele.
Tão logo terminou de comer voltou para o mato com todos os cachorros fazendo o maior escarcéu à sua volta. No outro dia era quaresma e segundo as tradições bruxais, dona Grená sabia que esse dia é que os feitiços são mais fortes, então preparou uma armadilha.
Com espinheiros de roseta e losna amarga, tudo bem seco, fez macumba num pé de Cinamomo. Colocou tudo rodeando o tronco e com três velas, uma vermelha, uma preta e outra amarela, deixou que queimassem até ao fim. Tinha de ser tudo durante a noite diante da luz da lua. Quando as velas já chegavam ao fim, o fogo pegou nas ervas seca e fez muita fumaça, fumaça que iluminada pela luz da lua tornava-se muito branca, subindo pelo tronco e se espalhando entre as folhas. No final a árvore brilhava com a mesma brancura da fumaça iluminada, ou seja, estava encantada.
No outro dia, o grande dia da quaresma, ela, dona Grena preparou bastante ossos para os cachorros, mas não deu durante aquele dia, deixou para dar durante a noite, pois já desconfiava que quem comandava os cachorros e comia suas comidas era um lobisomem. Fez questão, em uma determinada hora da noite, de por tudo em redor do pé da árvore encantada e ficou de longe espiando.
Como da outra vez, os animais começaram a comer, logo veio surgindo a figura enorme e peluda que foi se apossando da comida enquanto os cachorros se afastavam na maior latição. Só que aconteceu que... quando o lobisomem estava comendo, rosou o corpo na árvore e grudou. Notou que seus pelos estavam presos ao tronco e quando foi querer se livrar, grudou mais ainda e começou a subir como que puxado pela própria árvore. Em meio a urros de ladração o bicho se viu emaranhado nos galhos que se fecharam e o aprisionaram. Aí a velhinha foi dormir seu sono simpático com dois algodõezinhos no ouvido, que é para não ouvir muito barulho àquela noite.
Nossa simpática e mágica vovozinha, no outro dia, levantou feliz, mais descansada, sentindo um jeito alegre no ar. Tomou seu chazinho com torradas, deixou a mesa limpa e foi para o terreiro a fim de dar milho para as galinhas. Quando avistou a árvore de Cinamomo na beira da estrada a qual tinha feito a macumba, lembrou do lobisomem que ainda deveria estar preso lá. Foi conferir.
Qual foi o susto pela visão, e maior ainda o espanto de ver, preso entre os galhos, pelado, seu estimado compadre.
Ao ver dona Grena, suplicou por socorro, pelo que ela lhe explicou que a macumba só passaria se repetisse o trabalho tudo de novo durante a noite. Só então a árvore desencantaria e ele desceria.
Teve de ficar naquela situação durante todo o dia, quando chegou alta hora da noite, dona Grena fez o trabalho novamente e foi dormir. Não quis esperar as velas terminarem de queimar, primeiro por que sendo velhinha, precisava descansar, segundo por que uma senhora de respeito não tinha nada que ficar ali vendo seu compadre descer duma árvore todo pelado. Então disse boa noite e foi dormir.
Mas o verdadeiro receio dela sabem qual era? Que ela viesse a virar Mula-Sem-Cabeça, pois ainda era véspera de quaresma! Ah! E o compadre?

Esse fugiu, depois sumiu,
E nunca ninguém viu...
Foi pra Mongólia?
Perdeu a vitória...
Acabou-se a glória.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Você sabe quem era???



Meu pai conta que certa noite voltava com um grupo de amigos do sarau, como era chamado naquela época.
Estavam vindo pela rua conversando besteira e falando alto, como é de costume destes grupos de jovens, que não interessa a época do mundo, sempre agirão com a mesma natureza da rebeldia e intolerância que lhe são peculiares.
A rua era larga, mais ou menos dezoito metros de um acostamento a outro, e uma reta de se perder de vista. Cheios de subidas e decidas, hora leve, hora pesada. O grupo descia a ladeira forte que obrigatoriamente passava em frente a um cemitério.
O horário de um sarau terminar, como qualquer outra festa noturna, sempre é lá pelas tantas da madrugada. Nosso grupo de jovens vinha despreocupadamente, com já disse, duas e quarenta da madrugada. Madrugada iluminada somente pela lua, e lá em baixo da ladeira, um postezinho que mal iluminava o portão de entrada para o cemitério. De onde eles estavam mais ou menos cinqüenta metros acima, o poste mais parecia um palito de fósforo com uma brasinha ao lado.
Conforme se aproximavam do portão, tomava forma em meios as sombras uma figura de pessoa. Um dos jovens chamou a atenção dos demais alertando para aquela presença inesperada, e por que não dizer, duvidosa! Perturbadora!
A dita pessoa vinha caminhando, muito lentamente, no sentido contrário da deles, rente o muro do cemitério em direção ao portão da entrada. Era alto, dois metros ou mais. Com o chapéu de abas largas e bico empinado dava-se a impressão que mais alto ainda era. Uma capa negra lhe escorria pelas costas dando a visão de que chapéu, cabeleira e capa faziam parte de uma fundição só.
O grupo toma a decisão de atravessar a rua para o lado contrario ao da figura.
Com os olhos fixos na sombra imensa que se esgueirava, ajudados pela luz do postezinho, viram quando entrou pelo portão do cemitério e sumiu lá dentro.
O portão era alto e arredondado, com mais ou menos três metros de envergadura, de ferro enferrujado, lanças pontudas e molduras circulares. Uma corrente grossa com gomos como a palma da mão, enrolada fechava fortemente os dois lados do imenso portão. (Perceberam o detalhe?).
Quando o grupo de amigos se aproximou de frente para o portão, perceberam o inevitável e inconfundível detalhe! Mesmo estando do outro lado da rua podiam ver nitidamente as grossas correntes e o enorme cadeado que trancava o imenso portão de ferro. Então como é que aquele cidadão entrou "caminhando tranquilamente" sem ao menos parar para abri-lo?
A muralha do cemitério em questão tinha a dimensão de mais ou menos oitenta metros de extensão por quatro metros e meio de altura, de modo que não se podia ver nada do outro lado. Todo feito por postes de encaixe lateral e placas de concreto amontoado em cima um do outro deixando falhas de frestas que hora lhes escapavam capins e musgos bolorentos, hora somente o olho negro dum buraco quebrado.
Os rapazes nunca se importaram com crendices e mitologias mas, ficar para conferir é que não iriam. Um deu uma cotovelada no mais próximo e este no outro até que todos, no mais completo silêncio, avisados pelo olhar, avistaram por cima do muro a figura do chapéu e capa preta acompanhando, como que caminhando pelo lado de dentro do muro.
O que se via nitidamente era do quadril para cima. Notadamente caminhava devagar e a passos largos, de modo que acompanhava o grupo tranquilamente. Num determinado momento, antes do muro acabar, virou a cabeça e mesmo com toda a escuridão os jovens viram...!! Por debaixo do chapelão, um par de olhos grandes e vermelhos e logo abaixo duas ventas soltando fumaça.
A correria foi tão desesperada que chinelos, sapatos, sandálias, brilhantina, lenços e relógios foram se perdendo pela subida-a-fora até que cada um chegou na sua casa com “dois metros de língua” pra fora da boca e aterrorizados.
Depois disso levou quase um ano para saírem à noite novamente.

Eber

Os gogós da fala (conto de encantamento)



No tempo que Piên só era “piên”, e que o corvo cantava no gogó do urubu, tinha um fazendeiro extremamente rico e extremamente sabido que andava por estas regiões. Tudo o que se lhe era perguntado respondia na maior facilidade.
Esse fazendeiro mantinha em seu quarto uma gaiola com um casal de periquitos. Os passarinhos eram tão brancos que podia-se confundir facilmente com flocos de lã. Toda vez que os pobres bichinhos davam cria, o fazendeiro mandava decapitar as crias e comia- lhes o gogó. Essa estranha atitude seguia a muito tempo até que o mordomo da casa resolveu investigar o por quê do seu senhor agir daquela maneira.
Um dia levando três gogós cozidos para seu amo, escondeu um, entregando-lhe somente dois, o fazendeiro comeu sem fazer conta. O mordomo comeu o outro e este não lhe tinha chegado ao estômago quando, não se sabe como, ouviu uma conversação pela janela da cozinha. Foi logo verificar o que era a qual foi a surpresa encontrou um grilo e um Louva-a-Deus batendo papo. Ora, vejam só! Os gogós daqueles filhotes faziam entender as línguas dos animais.
O mordomo permaneceu calado, não contando nada a ninguém para manter segredo. Mas um dia, o patrão esqueceu seu relógio em cima da cadeira de palha na varanda onde costumava tomar chimarrão, veio um peru, deu umas bicadas no relógio e saiu com ele enroscado no bico. O patrão logo pediu para que seu funcionário de mais confiança, que era justo o mordomo, desse um jeito de achar o tal relógio perdido.
Este saiu aflito procurando pelo relógio a onde lhe dava na telha. Procurou por dentro da casa, ao redor da varanda, pelo pátio, e nada de encontrar. Quando passava pelo cercado das aves escutou as galinhas no maior dos cocorécos cacarejando e caçoando do peru que não conseguia se livrar dum enfeite ridículo no bico. Indo verificar o que era deu com o relógio enroscado e um peru desesperado. Entregando o relógio a seu dono, este ficou imensamente grato, porque além de ser um relógio todo banhado a ouro, havia sido um presente do seu pai, quando este ainda era moço.
Perguntando o que queria de recompensa, o mordomo falou que somente uns dias de folga já bastariam para que pudesse visitar sua família que morava longe. O patrão deu- lhe um cavalo, roupas novas e muito dinheiro para a viagem e para depois da viagem.
Andando numa estrada escura escutou dois esquilos berrando por socorro. Foi verificar e constatou que haviam sido capturados por uma arapuca de passarinho. Assim que os soltou, saíram pulando de alegria e lá de cima da árvore disseram que o dia que o mordomo precisasse era só pedir que eles viriam ajudá-lo.
Uma hora de cavalgada mais adiante, escutou um berreiro de fazer dó. Desmontou e foi verificar o qual encontrou dois pardais brigando e puxando uma minhoca cada um de um lado. Berrava o pardal da direta e berrava o pardal da esquerda, e também berrava de desespero a pobre coitada da minhoca. O mordomo pediu que parassem com aquela bagunça e resolvessem a questão sem se prejudicar um ao outro, mas os pardais reclamaram que estavam morrendo de fome. A minhoca protestou reclamando que ela nunca fez mal a ninguém por isso não deveria morrer. O mordomo disse que resolveria o empasse rapidinho. Foi até o cavalo e tirou duma bolsa um saquinho de sementes de milho de muito boa qualidade que pretendia levar para seus pais velhinhos plantarem. Deu para os pardais comerem até que estes encheram o papo e empanturraram as barriguinhas. Os pardais saíram voando e agradecendo que um dia iriam recompensá-lo. A minhoca fez um buraquinho na terra e foi-se embora prometendo contar do livramento para todas as suas amigas.
Chegando na casa dos seus velhos, encontrou por lá uma moça muito linda e maravilhosa que fazia companhia ao casal. Logo se apaixonou perdidamente. Esperou por um momento em que a moça estivesse sozinha e foi se declarar, o que a moça lhe disse que ela não era muito fácil de se dobrar. Seu coração era teimoso feito mula xucra e por isso ele teria que provar merecer seu amor.
Então ela lançou sua primeira prova: se o mordomo secasse um banhado que havia atrás da casa, e não ficasse nem pocinha de lama molhada, ela pensaria em casar com ele.
Nosso jovem mordomo se desesperou com aquela exigência absurda e tamanha ousadia.
Uma minhoca escutou a conversa e contou pra sua amiga mais próxima, que contou pra outra, que passou pra outra, até que chegou naquela em que havia sido ajudada. Combinaram em um batalhão delas irem socorrer o mordomo e durante toda a noite, encheram o banhado de buraquinhos até que toda a água do lago secou. Pela manhã quando o mordomo foi se preparar para o serviço encontrou tudo seco! As minhocas deram tchau e sumiram.
Logo em seguida a moça chegou para conferir o serviço e levou uma surpresa tremenda, que amoleceu-lhe as pernas.
Então ela lançou sua segunda prova: se o mordomo limpasse os cinquenta pés de avelãs que tinha no pomar da fazenda, ela pensaria em casar com ele.
O mordomo foi até o pomar de avelãs e começou a reclamar sua lástima quando um esquilo lá de cima escutou. Sumiu de vista rapidinho e com meia hora volta acompanhado. Logo começou a chover uma tempestade de avelãs que cobriram o chão todo do pomar. Um exército enorme de esquilos desceu e carregou cada um a sua avelã até encherem o paiol deste quase vir abaixo.
Agora era ela que começava a se apavorar.
Então ela lançou sua terceira prova: vou até o vale mais baixo deste terreno onde se encontra uns cupinzeiros abarrotados de formigas. Darei machadadas em todos eles. Você deve catar todas as formigas e dar fim nelas até terminar o dia, senão nada feito. Enquanto ela ainda falava, um pardalzinho passou voando por cima de sua cabeça e escutou. Quando ela começou a dar machadadas no primeiro cupinzeiro, logo uma nuvem de tapar o sol estava sobre eles. Choveu pardais de todo lado e comeram todas as formigas. Foi assim no segundo, no terceiro..., e quando ela terminou o ultimo, já não tinha nenhuma formiga mais pelo vale.
Ela vendo que a própria natureza se encarregava de ajudar o jovem mordomo, seu coração se quebrantou e caiu de paixão por ele.
O jovem mordomo voltou para casa do seu patrão com a nova esposa e riquíssimo. Rico de felicidade.

Eber

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

A aparição de ferro





No tempo em que se malhava o ferro e este chingava por ser malhado, um caso muito antigo na verdade e comentado até os dias de hoje, é que passou por estas bandas uma aparição totalmente diferente das do convencional!
Um colono, senhor de muitas terras, resolveu arrendar algumas pessoas para rosar-lhe o mato, que por sinal, era de perder de vista. Apareceram seis peões para o serviço. Foi-lhes dito que começassem logo no dia seguinte bem cedo. E assim ficou combinado. Naquele mesmo dia, lá pelas tantas da tarde, apareceu um jovem pedindo poso e serviço. O senhor colono avisou que realmente estava precisando de mais um para completar o pelotão da roçada, só que para o poso teria como acomodação uma caminha velha de colchão de palha, chamada de cama turca, na estufa de fumo.
O jovem, que tinha uma fala grossa de se espantar, disse que estava ótimo, mas a única coisa que queria como pagamento fosse comida. Gostaria de comer bem em todas as horas das refeições.
O colono ficou surpreso com a proposta, mas concordou, achando até graça no tipo da conversa. Chamou sua mulher e avisou que preparasse comida aos trabalhadores, só que servisse um pouco mais para aquele jovem da voz grossa, que só pediu comida como pagamento.
A mulher, curiosa para ver quem era o dito cujo, foi espiar pela fresta da porta da estufa e, o que ela viu foi um jovem muito formoso, bonito além da conta, que trajava calça brim preta e camisa branca, muito bem limpas. Não se podia ver uma manchinha sequer. Cabelos negros compridos até o pescoço e olhos azuis bem forte, como duas pecas, ou bolicas de vidro, como queiram chamar. Um par de botas preto reluzente que dava gosto de ver seu lustro.
Passou sentado na cama à noite inteira sem pregar o olho, com uma velinha na mão, quando essa se apagava, logo acendia outra, até que clareou o dia.
Logo cedo, foi servido o café com muito reforço. Torrada, geléia, leite, requeijão, café bem forte que era pra animar os trabalhadores, pão em forma de sanduíche com mais de um palmo de largura, banha salgada com toucinhos misturado, manteiga, bolinho de chuva, queijo de fatia grossa, boi ralado ao molho seco e muita mandioca frita.
A mulher do colono realmente havia caprichado, mas na verdade, ela desconfiava que o rapaz pudesse comer muito além dos demais. E não é que ela estava mais do que certa?
O moço comia numa velocidade impressionante, devorando tudo o que tinha na mesa, a ponto de não sobrar quase nada para os demais. A mulher se apressou em fazer mais mandioca, mais bolinhos, mais tudo para os demais trabalhadores, porque se não iriam ficar sem comer. Passado meia hora, o moço se levantou sem dizer nada e foi pro roçado. Pegou a foice e descambou no mato com uma violência que parecia um louco ensandecido, uma máquina em vez de gente. Logo os outros peões vieram e puseram-se ao trabalho, mas nenhum quis se aproximar daquele sujeito esquisito. Tomaram posição de um lado do terreno enquanto o outro ficava sozinho do outro lado.
Vejam só! Passados somente quinze minutos, o grupo havia roçado cerca de quinze metros, enquanto o moço já havia roçado mais de cento e cinquenta metros. Conforme ele avançava, os demais iam ficando cada vez mais assombrados com o que estavam vendo. Em uma hora de serviço o moço já estava em uma quarta de alqueire, enquanto os demais ficavam lá para trás.
O colono veio oferecendo água para os trabalhadores. Estavam ele, sua mulher e seu filho mais velho com jarras grandes de água fresca. Todos suavam à bica pois desde cedo já fazia um calor tremendo. Quando chegou a vez do moço esquisito, tiveram uma surpresa. Não suava e nem cansado estava! Tomou somente um gole do copo que lhe foi oferecido e, sem agradecer, voltou ao trabalho com mesma energia e violência de antes.
O certo é que a família já começava a ficar assombrada com aquele sujeito. O colono por sua vez, maquinava um jeito de por fim àquela situação, só que tinha receio de se aproximar daquela máquina que não parava nunca. Tocos despedaçavam, arbustos voavam feitos pedaços de palha pra todo lado, tufos de terra esburacavam do chão e voavam longe, de forma que com duas horas de serviço, teve de ser trocada a sua foice, cuja lâmina não sobrava mais do que um toco desdentado e todo rachado.
Quando o relógio bateu meio dia, ele havia feito mais de uma quarta de chão, enquanto os demais estavam tão lá trás, queque mal podia se ver suas cabecinhas. É claro que o grupo levaria uns três dias para completar o serviço, enquanto que o moço já havia feito a metade do seu.
Se apresentou para o almoço. Notaram que não se lavou, nem foi ao banheiro. Não estava cansado e muito menos suado. Suas roupas permaneciam impecáveis, tal qual quando chegara no dia anterior. Sentou e se tramou a comer como se tivesse cem anos de fome. Quanto mais a mulher servia, mais o dito comia. Já que o prato não dava conta, a mulher lhe servia a comida numa tigela grande, mas mesmo que ela virasse toda a panela ali pra dentro, não sobrava nada, e ele, com sua voz de caverna, pedia mais!
Quando os demais homens vieram para o almoço, já devidamente limpos, encontraram as panelas vazias e o moço com a mão em outra foice novinha, indo pro mato continuar seu trabalho. O jeito foi esperar a mulher fazer mais comida. Olharam pra mesa e deu pra perceber o que meia hora antes havia tido dentro daquelas panelas: na forma um leitão inteiro, no tacho costela de gado, no fogão a lenha em duas formas, dois frangos dos bem grandes, afora os tachos de arroz, feijão, macarrão, farofa de biju, torresmo salada de tomate, alface, berinjela.
Enquanto o novo almoço saía, os homens rodearam o colono e começaram a dar-lhe conselhos de que se livrasse do indivíduo o mais rápido possível. Achavam que a situação era tenebrosa e insuportavelmente anormal. Com certeza aquilo que estava trabalhando com eles não era humano! Não era gente! Nem deste mundo!!
Após ouvir as opiniões de espanto e preocupação de cada um daqueles peões por uma hora mais ou menos, o colono pegou um machado como quem está indo ajudar no trabalho, e foi de encontro à criatura. Chegando percebeu que o terreno havia sido revirado como se por uma colher enorme. Olhou em volta... aquilo se perdia de vista, tudo revirado, o mato todo arrebentado. Se aproximou por de trás do moço e pediu uma prosa. O moço nem aí. Então falou mais alto que queria falar-lhe, mas o moço só se importava em esvoaçar galhos, tocos e terra pra todo o lado, completamente surdo. O colono com medo de chegar mais perto, com o cabo do machado cutucou-lhe pelas costas. O que sentiu foi como se tivesse encostado numa pedra muito pesada, pois o cabo não afundou nem um milímetro na pele da criatura. Tentou empurrar, mas era como se empurrasse um trator, ou outra máquina muito grande. Tomando coragem, resolveu pegar-lhe o ombro e foi jogado cinco metros para trás como se fosse um travesseiro. Meio atordoado, o colono se levantou do chão e foi aí que percebeu: O moço tanto roçava com a foice, como com os braços, e nesse movimento louco e desembestado nada parava diante dele. Foi exatamente em desses movimentos dos braços que jogou o pobre homem pra longe.
Mais decidido do que nunca, juntou o machado do chão e firmou-o com as duas mãos, sentindo-as doerem de tanta força que fazia, precipitou-se pra cima da criatura mirando sua cabeça. O machado desceu veloz e potente, como só um lenhador experiente pode descrever. O aço do machado acertou a cabeça bem no meio do cocuruto e..., por tudo o que é sagrado nesse mundo, ouviu-se um barulho de ferro batendo numa bigorna e no mesmo instante, o machado voava pelos ares levando os braços do colono com ele.
O colono grita de dor sentindo como que se levasse um choque elétrico potente e cai no chão. Com dificuldade tenta se levantar, mas está com o corpo dolorido e os braços amortecidos. Uma sombra tampa o sol a sua frente, quando levanta os olhos, o moço o está olhando com os dentes cerrados e os olhos franzidos. Com aquela voz peculiar de caverna pergunta – O que é que você está fazendo? - então o corpo do moço (ou da criatura), foi se desfazendo, evaporando, se dissolvendo em uma nevoa misturada com a luz do sol. Como se nevoa e luz fossem uma coisa só, até que sumiu de vez. Mortificado de assombro pela visão que acabara de ter, o colono se levanta e corre aos tropeções pelo terreno revirado. Logo adiante já encontra os trabalhadores e toda a sua família que também, indubitavelmente assistiram ao espetáculo.
 
Eber

terça-feira, 11 de outubro de 2011

A avó do Belzebu (conto de encantamento)


Um colono tinha uma filha muito linda. A filha bela e educada ajudava em todos os afazeres de casa e ainda acompanhada o pai para a roça.
Certo dia estavam eles trabalhando na plantação de fumo quando uma bruxa se apresentou pegando a moça de surpresa. A bruxa assoprou um pó negro no rosto da moça fazendo com que ela desmaiasse. Mas ela não somente desmaiou como também começou a mudar, se transformar, envelhecendo sem parar. Enquanto a moça envelhecia devagarzinho, uma fumaça cor de prata subia do seu corpo e entrava direto no nariz da maldosa.
Na verdade o que estava acontecendo era que a boniteza, a jovialidade, o rosto lindo da moça passou para a bruxa, e toda feiúra, verrugas, pelos e cabelos desgrenhados e narigão torto passaram para a jovem.
O pai da moça não percebeu nada, pois tudo aconteceu no oculto da plantação. De repente uma risada alta e estridente quebrou a tranquilidade da natureza. O homem levantou os olhos e viu quando a megera saiu pulando, rindo e pulando muito alto, cada pulo passava a altura da copa dum pinheiro ou dum pé de eucalipto.
O pai saiu correndo desesperado até onde se encontrava sua filha e a encontrou desmaiada, feia, muito velha e toda embolotada de rugas e verrugas.
Com todo carinho que tinha dentro no coração o pai pegou a filha nos braços e levou para casa. Chegando lá a mãe da menina não suportou a terrível visão e desmaiou. O pai se desmanchou em choro desesperado e prometeu que haveria de encontrar uma cura.
Assim como existem bruxas más, também existem bruxas boas. Assim como existem fadas boas, também existem fadas más. E nosso homem sabia disso, pois já ouvira falar duma bruxa que fazia remédios, despachos, mágicas e benzimentos para o povinho da sua vila. O problema é que a tal vila ficava a dois dias de viagem a pé pelo meio da mata.
O pai da moça pegou uma mochila, colocou ali algum alimento, roupas e recomendou sua mulher para que cuidasse bem da filha, que não recebesse ninguém, nenhuma visita, até que retornasse com a cura.
Depois de um dia inteiro de viagem e metade do outro, ele encontrou uma casinha de palha onde morava uma velhinha. Uma velhinha muito velha, mas tão velha que o homem ficou na dúvida se era bruxa, fada, fantasma ou se a velhinha teria mais de trezentos anos.
Perguntando sobre a bruxa boa, a velhinha ensinou o caminho e entrou rapidinho para dentro de casa. O homem ficou ali parado na frente da casinha pensando no por que da pressa e reparando na choupana de palha em que ela morava. A choupana era feita de madeira, uma madeira de cor preta. Não é tinta não! É uma madeira chamada ébano. Telhado de palha. O que chamava atenção é que a choupana tinha dois andares, com três janelinhas no telhado e varanda também coberta de palha, varanda por toda a volta da casinha. Uma casa bem parecida é aquela que tem depois da entrada do Piên, bem ao lado do rio.
O homem se dirigiu até o endereço ensinado e encontrou uma casa bonita, grande e colorida, feita de alvenaria. Uma moça se apresentou como dona da casa. O pobre homem contou a sua história e a moça acabou por lhe revelar um segredo. Aposto que ninguém nunca pensou sobre o que vou revelar agora. Quer dizer, o que a moça bruxa revelou! “A magia das bruxas vem do “coisa ruim”, do belzebu. Não pode ser desfeito por qualquer outra magia. Somente modificado.
Vocês lembram-se da Bela Adormecida? As fadas não puderam desfazer o feitiço da fada má (por que fada má é bruxa), mas conseguiram modificar fazendo ela dormir por cem anos. Então. Como eu ia dizendo...
Uma vez lançado o feitiço, não tem mais jeito. O único que sabe desfazer esse tipo de feitiço é o próprio belzebu, o próprio dono da mágica.
A bruxa boazinha (por que bruxa boa é fada) ensinou que a única capaz de conseguir o remédio para tamanho feitiço seria a própria avó do “coisa”. Ela é muito antiga. Muito mais antiga que o próprio neto, e conhecedora de todos os segredos dele! E para surpresa do pai, a moça lhe ensinou que a vovó do “coisa ruim”  morava na floresta em uma casinha de dois andares, com três janelinhas em cima e toda coberta de palha. Inclusive na varanda!
Mas claro! O homem já havia passado por lá e até conversado com a tal velhinha!
Saiu apressado e agradecendo pela informação. Não demorou muito e já cruzava por dentro da floresta pelo mesmo carreiro que havia feito antes. Conforme a mata se fechava por cima da sua cabaça tampando o sol do dia, ele sabia que estava cada vez mais perto daquela choupana estranha e da velhinha.
Quando o sol foi escondido por completo pela mata e o breu tomou conta de tudo, uma luzinha bem fraquinha apareceu lá no final do carreiro e um fumo negro, mais negro do que a noite subia da chaminé da casa. Assustado, ressabiado e meio que tremendo, bateu na porta: toc, toc, toc!
A porta não abriu. Olhou para a janela mas não viu movimento nenhum. Olhou para o pátio da casa, para a mata, para as copas das árvores e arrepiado, assustado, ressabiado e meio tremendo, bateu na porta: toc, toc, toc!
A porta não abriu. Olhou para a janela e não viu movimento nenhum. Olhou para o pátio da casa..., para a mata..., para as copas das árvores..., de repente: nhéééééééééc (a porta abriu devagarzinho). - O que o senhor deseja? Perguntou a velha de voz rangente.
O homem perguntou se era ela a avó do “coisa ruim” o que ela respondeu de imediato que sim, era ela mesma. Então o homem contou a sua história sobre a bruxa que roubara a mocidade de sua filha e ele estava ali para conseguir o remédio. A vovó falou que só o neto é que tinha os ingredientes. Mas o pobre e desesperado homem implorou tanto, tanto, tanto que acabou por amolecer o coração da velhinha.
A vovó pediu para que o homem entrasse e explicou que seu neto estava pra chegar a qualquer momento, e se ele (o homem) resolvesse ir embora toparia com o próprio demônio pela estrada. O homem passou de todo arrepiado para todo assustado, e de todo ressabiado para todo desesperado. Começou a tremer inteiro quando a vovó lhe acalmou dizendo que o esconderia a tempo. Também lhe falou que os ingredientes para o remédio era um fio de cabelo do “coisa”, um toco da sua unha e a rapa do seu garrão. Mas não seria nada fácil porque seu neto era muito raivoso e esquentado.
Mal terminara de falar e já se ouvia os passos do tenebroso estremecendo o chão da floresta lá fora e fumegando tudo por onde passava de tão esquentado que era. A vovó colocou o homem escondido dentro do relógio cuco que se encontrava no alto da parede da sala (pois o homem era pequeno e o relógio enorme), e foi fingir que estava fazendo chazinho. O neto Belzebu entrou fazendo o maior rugido e quase arrebentando a porta mostrou o saco de almas que havia tomado do mundo. Almas que só haviam feito o que ele queria que fizesse, ou seja, maldades.
A vovó perguntou se o neto não estava cansado de tanto trabalhar e convidou-o para se sentar. Trouxe uma almofada grande para que ele pudesse esticar os pés e tirou seus sapatos para ver as unhas e o garrão. Do pé saia uma fumaça fedorenta e quente e do sapato também. Quando a vovó do “coisa ruim” estava levando o sapato lá para fora, ele perguntou por que a casa estava cheirando à carne de gente viva. Ela respondeu que não era nada, seu nariz é que tinha cheirado muita gente na hora de por no saco. E falando com jeitinho pro esquentado não esquentar ainda mais, e fazendo massagem no pé dele começou a aparar suas unhas. Um tic, dois tics, três tics e o neto já estava com raiva. Perguntou se sua avó não sabia que ele detestava cortar as unhas. Ela falou que então ia deixar daquele jeito mesmo, e guardando os toquinhos que cortara, deu a volta na poltrona e começou a fazer cafuné na cabeleira dele dizendo que ele tinha pegado piolho das pessoas que estavam no saco. Segurou um fiozinho e com muito jeito cortou e guardou junto com os cavacos de unha. O neto Belzebu estranhou as gentilezas da avó e perguntou se ela estava se sentindo bem o que respondeu que “véia” é cheia de manias assim mesmo. Deu a volta de novo e fingiu que punha chinelos nos pés do neto, quando lhe deu um forte arranhão no garrão que foi cavaco pra todo lado. Belzebu deu um pulo da poltrona fumegando de raiva e disse aos berros que sua avó já passava dos limites, que além de “véia” cheia de manias ainda era caduca do juízo, e foi para seu quarto dormir que ficava num buraco enorme e bem fundo no chão da terra.
Mais que depressa ela tirou o homem do relógio, entregou a rapa do garrão, os cavacos de unha e o fio de cabelo tudo num saquinho e empurrou-o porta a fora dizendo que era só moer bem moidinho até tudo virar um pó preto e assoprar no rosto da jovem. Dizendo isto fechou a porta e não saiu mais.
O pai da moça tratou logo de voltar pra casa, pois sabia que teria dois dias de viagem. Não encontrou incomodação nenhuma pelo caminho e nem sentiu fome. Pensou até que algum anjo o estava ajudando. Ou era a avó do “coisa ruim”? Ou a moça bruxa da vila? Só tinha certeza era que conseguira o remédio para quebrar o feitiço e estava feliz da vida.
Quando chegou em casa foi logo beijando a esposa e colocando os ingredientes do saquinho numa tigela de barro. Depois pegou um socador e moeu tudo até virar pó. Ficou espantado que as unhas, o cabelo e as cascas do garrão se moessem tão facilmente dentro do pote. Depois virou a tigela na mão da sua esposa. Ela foi bem devagarzinho com o maior cuidado até o quarto da filha e lhe assoprou o pó no rosto. Conforme a moça ia respirando, o pó negro entrava-lhe pelas narinas, e à medida que sumia lá pra dentro a jovialidade e saúde da jovem retornava com todo o seu esplendor.
Em algum lugar desse mundão, uma bruxa tomava chá e se olhava no espelho admirando sua beleza! Mas então..., foi envelhecendo, envelhecendo, envelhecendo até que só sobrou os ossinhos dela amontoados no chão.

Eber

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Um Tropel que ninguém viu

Um Tropél que ninguém 

Um Tropel que ninguém viu (Piên - Poço Frio - 2011)
Como é de costume para quem lida com fumo, combinávamos de quem seria a vez de pernoitar na estufa classificando as folhas e atendendo o fogo de secagem das folhas.
Eu e meu irmão nos prontifiquemos de iniciar a semana e no dia seguinte seria a vez dos velhos. Sempre algum contratado para o serviço de classificação acompanhava ou a nós, ou aos velhos. Os velhos de que falo é meu pai e minha mãe. Estão ainda vivos até hoje.
Bem, acontece que durante aquela noite, começou a soprar um vento forte, quente, como se fosse o ar de dentro da própria estufa. A diferença do fato era que o vento quente vinha do mato.
O mato se encontrava bem á nossa frente, pois a porta de entrada de estufa era virada para o matagal. Depois da beira que dividia o mato do nosso terreiro, tudo o que vinha era uma mata fechada, densa e escura. Escura até nos dias mais claros e quentes do verão.
O suador que passamos naquela noite foi de cozinhar osso. Durante todo o tempo eu escutava um tropel de cavalos correndo pela mata e relinchos como se houvesse um cinqüenta deles. Um pouco antes do alvorecer os relinchos emudaram, o tropel foi apagando e o vento quente sumiu. Chegamos em casa ressabiados, com as roupas empapadas de suor e alvoroçados. Claro que despertou uma certa curiosidade nos demais da casa.
No outro dia, abaixo de caçoadas e chacotas fomos pernoitar todos na vigília de estufa, classificando fumo e cuidando do calor para a secagem das amarras de folha. Numa altura de madrugada, todos entretidos com seus afazeres, meu pai notou que por menos lenha que colocasse no forno da estufa, ela continuava quente demais. Desconfiado e com falta de ar saiu se refrescar, mas, o que notou de imediato era o ar esquisito que encontrou. Um vento quente, como se fosse da boca dum forno, soprava de dentro do mato para dentro da estufa, tomava conta de todo o pátio e chacoalhava as copas das árvores em toda a nossa volta.
Minha mãe e um rapaz contratado largaram os fardos de fumo e vieram correndo dizer que escutaram alguma coisa, foi quando todos prestaram atenção no barulho de vento e realmente, junto da ventania quente vinha crescendo um tropel de cascos de cavalo e relinchos, como se a mata estivesse completamente tomada de uma legião de cavalos. A ânsia de saírem correndo dali foi desesperadora, mas ninguém moveu um músculo sequer.
Estávamos todos paralisados de pavor. Meu pai foi caminhando devagar até a parte da frente da estufa onde tinha uma área de cobertura e uma mureta que separava o pátio. Todos nós viemos logo atrás. Assustados olhávamos pro mato esperando que a qualquer momento os cavalos irrompessem de lá. A barulheira era terrível e crescia cada vez mais.
Dali a pouco o mato á nossa frente chacoalhou como se estivesse sendo castigado, ou como se criasse movimento próprio. Galhos, folhas e muita terra brotavam do chão e voavam pelos ares como se estivessem sendo chutadas por muitas patas, só aquilo para cima da gente. Tivemos que se proteger uns aos outros e tampar os rostos para não ficar cego com tanta terra e cisco que vinha com a ventania.
Todos escutávamos o tropel pelo pátio em direção á estufa, mas ninguém via nada! De repente meu pai gritou cuidado e abriu os braços se afastando todo mundo de perto da mureta. Foi quando vimos uma centena de pegadas de cascos de cavalos se aproximando rápido e com uma violência tal que arrancava grama e terra do chão fazendo voar terrões para todo o lado. O tropel parou quase em cima da mureta e o que ouvíamos era de se arrepiar: o fungado dos cavalos bem na nossa frente. Dezenas, ou até centenas de bufadas soprando pó de terra e bafo quente nas nossas caras.
Num momento de lucidez, notamos que o amanhecer vinha surgindo no horizonte. Uma linha prata se formava rápido lá adiante dos montes. Á medida que surgia o dia, sumia o vento quente, desaparecia o barulho infernal dos cavalos, tudo voltava na mais tranqüila calmaria. Excedo por um detalhe: o cavoucado dos cascos ainda estão lá... Até hoje!

Eber

Onde posso por?


Onde posso por? (Piên – Poço Frio – 2011.)

Conta-se pelo povo da localidade de Poço Frio, quando falo povo é porque todos conhecem esse fato, que na ponte da igreja e nos arredores dali volta e meia alguém topava com um homem de terno branco e uma estaca em cada mão, passeando durante a madrugada e dizendo sem parar, onde eu posso por?
Depois de um certo tempo o homem parou de aparecer nas redondezas da igreja e começou a cercar as pessoas em cima da ponte sempre com a mesma pergunta: - “onde posso por?
Um dia vinha passando pela ponte uma família, lá pelas 11 horas da noite, quando avistaram o homem de branco que vinha em sentido contrário deles, também cruzando a ponte. Como já se sabia da existência do tal individuo, todos firmaram os passos e não levantaram a cabeça imaginando que o homem passaria por eles sem lhes dirigir a palavra. Mas quando se emparelharam lado a lado, o homem parou, virou-se para eles e perguntou com uma voz que mais parecia ter saído duma manilha: - onde eu posso colocar? – O pessoal paralisou no lugar onde estavam, mas viram bem com quem estavam falando.
O homem vestia sapatos brancos tão lustrados que ardiam os olhos, vestia um terno tão alvo, tão branco que cegava as vistas, segurava uns marcos de madeira tão branca como neve, tinha o rosto tão branco que parecia mais cera de vela.
O pessoal que viu aquilo ficou tão apavorado que saíram correndo de cima da ponte e nem sequer olharam para trás. Quando chegaram em casa contaram para o senhor pai da família. O homem ficou pensando, não disse nada, mas resolveu averiguar se era mesmo o que estava desconfiado. Acontece que ele sabia dum ocorrido que teve a algum tempo naquelas terras e conhecia o homem que morrera. Esse homem era muito poderoso, dono de muitas terras, só que tinha mania esquisita de arrancar os marcos de seus terrenos, quando morreu, não havia sossego para ele enquanto alguém não lhe mandasse por de volta.
Na próxima noite o pai corajoso esperou dar o mesmo horário que sua família havia encontrado o individuo e se foi para o meio da ponte. Não esperou muito, lá veio o homem de branco repetindo sem parar, sem pressa, bem devagar: - onde posso por? Onde posso por? – O pai valente gritou para a visagem – “coloque aonde você arrancou!” – Naquele momento, a visagem foi se elevando no ar, como que sem peso nenhum, cruzou por entre as muretas laterais da ponte (naquele tempo a ponte tinha muretas), e entrou dentro das águas do rio. Quando estava bem debaixo da ponte fincou suas estacas na areia barrenta e funda.
O corpo branco da alma penada foi se dissolvendo nas águas, e conforme a correnteza passava, o corpo branco liquefeito acompanhava as ondas até não restar mais nem uma réstia dela.
Diz que as estacas estão lá ainda plantadas, fixas debaixo da ponte. Toda vez que alguém, inocentemente resolver nadar e arrancar as estacas do seu lugar, a criatura ressurge! Para que ela vá embora novamente, deve-se mandar que ela finque as estacas no rio. Se não fincará no seu coração!

Eber

O Lobisomem Comeu

O Lobisomem Comeu


O Lobisomem Comeu (Piên – Poço Frio – 2011)

   A mais ou menos uns dez anos atrás, um fato chocou a localidade de Pocinho.
   Um fazendeiro tinha um funcionário que cuidava da sua plantação e dos animais. Esse funcionário morava atrás do paiol em uma casinha que ele mesmo fez, caindo aos pedaços, e se recusava a morar em outra casa melhor, o patrão fazia de tudo para que ele saísse daquela choupana velha e fosse para uma de suas casas que era de alvenaria, branquinha, limpinha. Mas ele não queria e pronto. O funcionário era muito trabalhador e se dava muito bem com todos na fazenda, por isso o patrão gostava muito dele, mas não concordava de ele viver sujo e isolado daquela maneira.
     Certo dia estava o patrão indo falar com seu funcionário lá por 10 horas da noite, quando percebeu que este saía de casa agachado entre as moitas do mato se ia sumindo. O patrão desconfiado correu atrás para ver o que o funcionário estava aprontando, mas quando chegou em uma clareira perdeu o homem de vista.
     Quando virou para sair dali, deu de cara com um lobisomem com mais ou menos dois metros e meio de altura. O patrão reconheceu que era seu funcionário porque o lobisomem estava vestido com a camisa que o homem costumava vestir sempre. Apavorado, o patrão gritou o nome de seu funcionário e saiu correndo se chocando com tudo quanto é árvore e moitas do matagal. Num tropeção se estatelou numa poça de lama. Tentou levantar mas sentiu que suas pernas estavam presas pelo tornozelo que apertava tanto que quase as quebrava. Olhando para cima viu dois olhos enormes amarelados bem na frente de seu rosto.
      Passou pela sua idéia que era o lobisomem que segurava suas pernas, não deu mais tempo: Duas garras enormes lhe abriram o peito e comeu tudo o que tinha ali dentro.
    No outro dia cedo, a mulher do patrão não encontrando ele em casa, foi perguntar para o funcionário se por acaso o tinha visto. O homem mentiu dizendo que não sabia onde estava o patrão, mas mentiu tão mal que a mulher ficou desconfiadíssima, ela saiu dali prometendo que iria tirar aquela história a limpo e descobrir a verdade.
Pelas seis da tarde convocou todos os empregados da fazenda, mandando que se armassem com o que pudessem: armas de fogo, apás cortadeiras, machados, porrete, facão..., e saíssem à caça da criatura que causou aquela atrocidade com seu marido!
    Quando todos se deslocavam mato a dentro, chamou um moço que era de sua maior confiança e cochichou-lhe aos ouvidos que ficasse de olhos bem abertos quanto ao capataz da fazenda, e o não perdesse de vista nem por um minuto! O qual o moço prometeu-lhe e se foi. A caçada durou a noite toda, até que amanheceu o outro dia, mas...
     Naquela madrugada o lobisomem entrou no quarto da mulher arrebentando a janela que ficava no terceiro andar. A mulher não teve tempo nem de gritar, pois o lobisomem também arrebentou seu peito e comeu tudo o que tinha ali dentro.
    O filho caçula do casal viu quando o lobisomem saiu e também percebeu a camisa que ele vestia. Era justamente a do funcionário da fazenda.
   Na época tinha dezesseis anos. Agora está com vinte e seis. Perguntado sobre o nome do funcionário, não quis falar. Perguntado sobre seu nome, também não quis comentar.

Eber

A casa assombrada do Lageado


A casa assombrada do Lageado (Piên – Lageado - 2011)

Esse fato aconteceu há uns vinte anos atrás no Lageado: Em uma casa morava uma família e ocorreu que certo dia as coisas dentro dessa casa começaram a se mexer:
        A mulher estava lavando louça quando o armário abriu uma das portas. Ela viu e ficou olhando pensando ser algum bicho ali dentro. Como não aconteceu mais nada, fechou a porta do armário e continuou lavando a louça. A porta abriu novamente. Quando se virou para olhar dentro, um copo de vidro saiu voando quase acertando sua testa e se espatifando na parede do outro lado da cozinha. A mulher saiu apavorada de dentro de casa e só entrou depois que o marido chegou do serviço.
       Depois daquele dia todas as coisas de dentro da casa começaram a se mexer. Tampas de panelas começaram a dançar no meio da cozinha. Quando a dona da casa colocava feijão para cozinhar, a panela saia pulando do fogão e caía no chão derramando tudo. Um dia o homem da casa foi se sentar numa cadeira e ela saiu correndo da cozinha para a sala. O homem levou tamanho susto que não queria mais entrar dentro da sua própria casa.
Chamaram um benzedor muito bom, que corria a sua fama para além do Lageado. Chegando na casa começou a fazer seus trabalhos de benzedeiro quando, estava para passar por uma porta, esta se fecha tão rápida e violenta que acerta em cheio a cara do coitado arrebentando-lhe o nariz. Nunca mais ele voltou lá!
        Outra vez, a mulher estava para receber em casa um padre muito valente e acostumado com esse tipo de serviço, e colocava pedriscos num vaso grande para deixa-lo no canto da sala. Não agüentando mais toda aquela tormenta por causa dos moveis se quebrando a toda hora, por isso, achou melhor deixar a sala um pouco mais bonita. Quando estava para terminar, as pedrinhas simplesmente começaram a sair do vaso como se ele estivesse transbordando. A diferença era que as pedrinhas não estavam caindo do vaso e sim rolando para fora dele. Foram tomando conta de todo o chão da sala. De repente o padre entra e as pedrinhas que estavam pelo chão, num piscar de olhos, voaram para o teto e grudaram lá em cima.
    O padre pediu que a mulher se retirasse e começou seu trabalho de exorcismo quando, todas as pedrinhas voaram no padre grudando nele como sanguessugas, cobrindo todo seu corpo. O padre começou a gritar por socorro porque tinha pedrinhas entrando nos seus olhos, ouvidos, boca, na bunda... Saiu correndo terreiro à fora e despencou numa ribanceira. Lá em baixo os pedriscos deixaram o pobre homem e ele nunca mais voltou.
     E assim tudo o que tinha dentro da casa se mexia e saía do lugar a qualquer dia e qualquer hora.
   Benzedeiros, padres, espíritas, bruxos, pastores e uma infinidade de religiosos passaram por lá, mas o tormento continuava. Um judeu tentou pronunciar uma leitura e sua moeda que estava no bolso da calça tampou-lhe o gogó. Um budista japonês tentou recitar uma lei do Buda e acabou engolindo o livreto. Um indiano tentou queimar uma varinha de incenso, mas saiu tanta fumaça daquela varinha que quase matou a ele e toda a família asfixiados.
Já se ia quase seis meses, quando um velhinho de 88 anos atravessa a rua e se põe a olhar para dentro da casa. Como o velho não chamava ninguém, foram lá ver o que ele tanto olhava. Então contou para a família a seguinte história:
       - Muito antes de vocês virem morar nessa casa, havia um homem cruel por demais que, cada vez que resolvia educar um filho, acabava por tirar-lhe a vida de tanto bater. A mulher não conseguia defender os filhos. Sempre acabava apanhando também. Naquele tempo o lugar era de mata virgem. Até os índios não queriam saber do homem. A mulher teve 12 filhos. Ele matou 11. A mulher vendo que mais dias, menos dias seu caçula logo levaria a surra de morte, fugiu e nunca mais foi vista por ninguém, nem pelos índios da mata. Mas o homem cruel ficou ali até morrer. E foi enterrado no fundo do seu quintal junto com os outros 11 que ele tinha espancado até a morte.
Perguntaram ao Ancião como fariam para se livrar dos espíritos das crianças e do homem que assombrava a casa. O velho respondeu que não tinha nada a ver com aquela gente enterrada, e sim com os espíritos malignos que por causa do acontecido, e por causa do cervo do “coisa ruim” (que era o pai cruel), eles estavam ali para confundir e acabar com toda a família plantando discórdia, pancadaria e medo. Então, antes de se despedir, o velho deixou uma receitinha:
      - Contra essa corja de demônios vocês têm que pedir somente a Deus. Rezar somente a Deus. Não pode ser nem ter pessoas diferentes na casa. Somente a família. Reúnam-se sempre no lugar mais sagrado da casa que é a mesa da ceia. Ajoelhem como se estivessem diante Dele. Falem em voz alta como se fosse no ouvido Dele.
       O velho sábio foi embora e a família pôs em prática todos os dias tudo o que ele dissera. No cabo de uma semana a casa estava livre, leve e serena como um templo.

Eber

quinta-feira, 2 de junho de 2011

A onça de pedra


  
   Conta-se que na pedreira antiga, depois do Poço Frio e quase  na Campina dos Maia uma empresa especializada em extração de pedras acabou por aparecer por essas bandas.
     Naquela época as estradas eram abertas a muque do braço. À pás e enxadas e mulas. As estradas eram muito precárias e havia caminhos de roça sem fim. Mas quando o maquinário começou a chegar, foi a sensação do momento.
     Os pouquíssimos habitantes que existia por aqui ficaram entusiasmados e extasiados pelo tamanho dos maquinários que chegava a todo o momento, exceto por um índio caingangue. Sabia das histórias que seu povo, da família Jê, que povoara estas regiões no passado. Sua preocupação tinha fundamento, só que, ninguém nunca acreditava no velho Índio, então ele guardava seus segredos somente para si.
     Mas um dia, um desses dias em que todos estão atarefados, falando alto, martelando, quebrando e roncando seus maquinários, o caingangue atravessa pelo meio da obra apressado, de cabeça baixa, como quem não quer olhar aquelas coisas horrendas e vergonhosas da civilização. Sabia que aquelas máquinas feitas pelas mãos do homem branco somente servia para destruir a mãe natureza de que ele, sua família, seus antepassados tanto amavam.
      Foi quando um peão da obra avistou o índio lá de cima do seu gigantesco caminhão e berrou a todos pulmões que o caingangue deveria beijar seu deus tupã, o caminhão.
      Outro que estava numa retro-escavadeira entrou na brincadeira sugerindo, também aos berros, que as máquinas estavam amolecendo de vergonha por ver um índio além de pelado, ser o pelado mais feio que a mata já criou. Ele bem sabia que não estava completamente nu e não se deixaria provocar por brancos ignorantes.
       Foi quando o primeiro a provocar falou novamente perguntando se por acaso o índio velho não teria em casa umas indiazinhas para ele fazer festa. Podia ser até a índia velha que não se importariam.
       O caingangue já estava quase fora do canteiro de obras quando se voltou, pegou seu Katukinaru e começou a batucar um ritmo estranho, violento, gemendo e espancando o tamborete como se estivesse com muita dor cantou:

                            Mim hoje foi humilhado
                            Porque homem branco
                            Não conhece o Deus de Jê.

                            Mas Tupã mandará ming’ça
                            Acabará com ronco até cá
                            E fará tudo isso goro-erê

      Quanto mais o índio cantava, mais os homens riam; cada vez mais alto ele gemia e chora, mais os homens se deliciavam em zombarias.
      Certo momento daquela euforia, estava o pessoal do barraco onde era o escritório improvisado da empresa, todos olhando o espetáculo pelas janelas, quando se ouve um rugido que ensurdeceu os roncos de todos os motores tanto de tratores como de caminhões, e também os ouvidos de todos.
       O escritório improvisado fora feito ao lado dum barranco de pedra, este era mais alto que o barracão de modo que quando o pessoal escutaram o rugido, abandonaram o espetáculo do índio e mudaram para as janelas do outro lado. Quando olharam para cima da montanha avistaram uma onça preta muito grande, enorme mesmo. Ela deu um salto e projetou-se queda abaixo entrando com a violência de um Quibungo. Foi uma gritaria só. Todos se jogavam por cima e por baixo dos móveis, outros tentavam pular as janelas, mas o escritório fora feito numa elevação de pedras, o que acabavam por se espatifar lá em baixo. A onça preta (ming’ça), distribuía patadas com suas garras afiadas como navalhas, rasgando a carne que encontrava pelo caminho.
     Com a mesma violência que espatifou o escritório e todos que estavam lá dentro, saltou pelo outro lado das janelas e pousou na cabine do caminhão daquele que fez a primeira provocação, mostrou seus dentes caninos enormes e... rugiu! Rugiu tão alto que o vidro pára-brisa se espatifou. O rugido não diminuiu, antes foi ficando ainda mais alto até que brotou sangue dos ouvidos do peão, que de tanto pavor, o coração parou. Com a agilidade dos felinos, pulou do caminhão até a retro-escavadeira e com uma só patada quebrou o pescoço do outro peão. Saltou no chão e saiu caminhando como um gatinho que tivesse acabado de tomar leite.
     Ao passar ao lado do índio, parou para escutar a música que agora era uma melodia fraca, resmungada, quase um sopro. Escutou e se foi.
     O caingangue de Piên sentou no seu katukinaru e ali ficou o resto daquele dia, a noite toda e o outro dia até as três horas da tarde do dia seguinte, onde todos, assustados e humilhados deixaram estas terras.
     Índio levanta, olha para cima e sorri, pois o que ele vê com certeza não verá por muito tempo, pois ele é índio velho, logo partirá dessa terra; más o que ele vê continuará ali a piar no seu céu de sempre; outros virão, gente nova nascerá e verão o mesmo que ele, seja antes dele, e depois dele, e muito depois também: Um pássaro no céu que canta -  piééé – piééé – piééé...

Eber