Meu pai conta que
certa noite voltava com um grupo de amigos do sarau, como era chamado
naquela época.
Estavam vindo pela rua
conversando besteira e falando alto, como é de costume destes grupos
de jovens, que não interessa a época do mundo, sempre agirão com a
mesma natureza da rebeldia e intolerância que lhe são peculiares.
A rua era larga, mais
ou menos dezoito metros de um acostamento a outro, e uma reta de se
perder de vista. Cheios de subidas e decidas, hora leve, hora pesada.
O grupo descia a ladeira forte que obrigatoriamente passava em frente
a um cemitério.
O horário de um sarau
terminar, como qualquer outra festa noturna, sempre é lá pelas
tantas da madrugada. Nosso grupo de jovens vinha despreocupadamente,
com já disse, duas e quarenta da madrugada. Madrugada iluminada
somente pela lua, e lá em baixo da ladeira, um postezinho que mal
iluminava o portão de entrada para o cemitério. De onde eles
estavam mais ou menos cinqüenta metros acima, o poste mais parecia
um palito de fósforo com uma brasinha ao lado.
Conforme se
aproximavam do portão, tomava forma em meios as sombras uma figura
de pessoa. Um dos jovens chamou a atenção dos demais alertando para
aquela presença inesperada, e por que não dizer, duvidosa!
Perturbadora!
A dita pessoa vinha
caminhando, muito lentamente, no sentido contrário da deles, rente o
muro do cemitério em direção ao portão da entrada. Era alto, dois
metros ou mais. Com o chapéu de abas largas e bico empinado dava-se
a impressão que mais alto ainda era. Uma capa negra lhe escorria
pelas costas dando a visão de que chapéu, cabeleira e capa faziam
parte de uma fundição só.
O grupo toma a decisão
de atravessar a rua para o lado contrario ao da figura.
Com os olhos fixos na
sombra imensa que se esgueirava, ajudados pela luz do postezinho,
viram quando entrou pelo portão do cemitério e sumiu lá dentro.
O portão era alto e
arredondado, com mais ou menos três metros de envergadura, de ferro
enferrujado, lanças pontudas e molduras circulares. Uma corrente
grossa com gomos como a palma da mão, enrolada fechava fortemente os
dois lados do imenso portão. (Perceberam o detalhe?).
Quando o grupo de
amigos se aproximou de frente para o portão, perceberam o inevitável
e inconfundível detalhe! Mesmo estando do outro lado da rua podiam
ver nitidamente as grossas correntes e o enorme cadeado que trancava
o imenso portão de ferro. Então como é que aquele cidadão entrou
"caminhando tranquilamente" sem ao menos parar para
abri-lo?
A muralha do cemitério
em questão tinha a dimensão de mais ou menos oitenta metros de
extensão por quatro metros e meio de altura, de modo que não se
podia ver nada do outro lado. Todo feito por postes de encaixe
lateral e placas de concreto amontoado em cima um do outro deixando
falhas de frestas que hora lhes escapavam capins e musgos bolorentos,
hora somente o olho negro dum buraco quebrado.
Os rapazes nunca se
importaram com crendices e mitologias mas, ficar para conferir é que
não iriam. Um deu uma cotovelada no mais próximo e este no outro
até que todos, no mais completo silêncio, avisados pelo olhar,
avistaram por cima do muro a figura do chapéu e capa preta
acompanhando, como que caminhando pelo lado de dentro do muro.
O que se via
nitidamente era do quadril para cima. Notadamente caminhava devagar e
a passos largos, de modo que acompanhava o grupo tranquilamente. Num
determinado momento, antes do muro acabar, virou a cabeça e mesmo
com toda a escuridão os jovens viram...!! Por debaixo do chapelão,
um par de olhos grandes e vermelhos e logo abaixo duas ventas
soltando fumaça.
A correria foi tão
desesperada que chinelos, sapatos, sandálias, brilhantina, lenços e
relógios foram se perdendo pela subida-a-fora até que cada um
chegou na sua casa com “dois metros de língua” pra fora da boca
e aterrorizados.
Depois disso levou
quase um ano para saírem à noite novamente.
Eber