domingo, 8 de maio de 2011

Cachorra Humana


Cachorra Humana

Na estrada do cemitério velho que sobe para o Campo Novo um homem fez uma tocaia se escondendo num buraco à beira da estrada e munido de espingarda, pernoitou a noite toda ali esperando sua loba branca. O que ele não sabia é que não era loba e sim cachorra. O que ele não sabia era que nem cachorra era...
Na primeira noite percebeu uma mulher que transitava de lá para cá, dando voltas e andando devagar. Hora arava e olhava como se visse muito distante, hora levantava a cabeça e... Por tudo que é sagrado, podia jurar que cheirava o ar à sua volta.
Passou-lhe pela cabeça de que aquela mulher estivesse sentindo o seu cheiro, mas por dois motivos impossíveis resolveu não matutar muito sobre aquilo: primeiro é que como bom caçador que era tomou a precaução de passar lama misturada com cinza de pau-canela para nenhum bicho o achar pelo faro. Segundo é que gente nenhuma é capaz de achar outra pessoa só pelo cheiro, não é verdade?
Durante a noite toda se manteve entocado na tocais esperando pacientemente, mas a tal raposa branca de que haviam lhe falado não apareceu. Em compensação aquela mulher lhe fez companhia por tempo integral, andando pela estrada de lá pra cá sem ao menos descansar um minuto que seja, e como já lhes disse, hora ficava olhando distante, hora erguia a cabeça como que cheirando o ar, hora mirava em sua direção (a do caçador), como se o visse dentro de sua tocaia e por momentos, olhava o interior do mato como se pudesse ver dentro dele através de todo aquele breu da noite que só uma mata virgem e fechada oferece.
A lua estava cheia e brilhante, tornando tudo muito prateado e mesclado com sombras de negritude. O caçador viu o momento em que ela entrou no meio da mata e sumiu na escuridão: eram 04h50min da matina.
Durante aquela noite ninguém se queixou de seus animais serem atacados por raposas ou qualquer outro bicho do mato, tudo esteve na mais completa paz, levando o nosso caçador a crer que talvez algum outro caçador já tivesse matado o bicho.
Durante os dias que se seguiram começou certo murmúrio entre os homens da cidade de que naquela mesma noite em que o caçador se escondera em seu buraco, viram uma mulher de vestido de véu azul quase que totalmente transparente, branca como a própria lua daquela noite, cabelos alvos como algodão, compridos lá pelos tornozelos, passeando pela estrada e acenando para carros e carroças que transitavam durante aquela madrugada. Nenhum dos que toparam com ela parou para dar-lhe atenção, mais pelo receio do desconhecido do que pela beleza angelical da mulher de vestidos de véu.
Nas rodas de cerveja em seu bar predileto o caçador participava do assunto como se fosse novidade do dia, ou ainda como uma piada que acabara de ser inventada, mas o que realmente sentia era um incomodo terrível embrulhando-lhe as entranhas. Tornou para lá mais três vezes sem sucesso algum. Voltava frustrado. Os comentários ou piadas já não faziam a menor graça. Até que a raposa surgiu novamente atacando todas as localidades do Piên.
Estabelecera-se uma confusão enorme na boca do povo, pois uns tinham certeza que era uma raposa branca (ainda era branca?), outros diziam que este tipo de bicho não existe e o que todos viam era um lobo branco. O problema é que lobo não existe no Piên, muito menos branco. Outros afirmavam que era um cachorro, um cachorro enorme e branco quase do tamanho de um burrichó. Hora essa! Esse cachorro tem tetas! Então é uma cachorra, das enorme e selvagem. A discução continuava e ninguém chegava a consenso nenhum.
O caçador não cria no que seus ouvidos escutavam. Gente de todos os lados, de localidades desde a mais distante e de mais perto, sempre alguém cá ou lá falava de uma tal cachorra branca devorando os animais pequenos das fazendas. O caçador começou a prestar atenção no cardápio da suposta cachorra: galinheiros inteiros eram devastados, gatos e cachorros estraçalhados, uma série de animais de porte grande como cavalos, vacas, carneiros, bodes, porcos hora quebrados hora com arranhões profundos. Será que não se trata de lobisomem?
Nosso homem não era de se intimidar por mitos ou boatos, mas vinha notando uma inquietante troca de atitude por parte dos moradores colonos. O povo estava se armando e tomando precauções que só cabiam ou para ataques de animais ferozes ou para criminosos que sondassem suas casas, sem falar no boato dos animais mortos que crescia mais e mais a cada semana que passava.
Passou-se um mês desde primeiro ocorrido da aparição.
Uma noite o caçador olhou para as estrelas e percebeu que estava do jeito e tipo que mais gostava. A lua clara como cristal, podia se ver pela noite a dentro como se fosse dia, tal era o brilho da cheia. Claro que este detalhe não passou despercebido pelo caçador, nem que exatamente há um mês atrás foi que viu a mulher da estrada bem de pertinho.
Levou com sigo um colega de caça tão experiente e destemido quanto ele. Passaram boa parte do entardecer arrumando a tocaia e se lambuzando de argila preta e cinza. Carregaram as espingardas como se tivessem absoluta certeza que o bicho, seja lá qual for haveria de passar por eles, ou por roda deles, ainda que passasse distante estariam preparados para a perseguição. Este foi o combinado antes de sair de casa e mesmo antes da semana terminar. Combinavam em seus bares ou rodas de encontros, mas o que não conversaram e fizeram questão de guardar cada um pra si era que tinham de ver aquela mulher novamente. Enquanto a noite avançava breu adentro cada qual remoia sua aflição com um aperto indescritível no coração já abarrotado de desejos e malícias como que se preparando de antemão para o encontro com aquela maravilhosa mulher de luar fulgurante.
Num dado momento, digo, lá pelas três da matina viram o vulto que descia a estrada lentamente como quem passeia num parque totalmente despreocupada e alheia a tudo à sua volta, olhando o breu da matas, cheirando o ar como se cheirasse uma flor perfumada e deliciando-se com a brisa fria e calma da noite. Seu vestido de véu transparente esvoaçava formando pequenas ondas sobre o corpo tentador e como uma bandeira florescente tremulava seu azul prata sinistro pra alguma alcova da morte.
Num momento de divagação ela para lá no meio da estrada e se vira lentamente, como que acompanhando algo que não se vê e olha, e acena delicadamente sorrindo, um sorriso que só os anjos celestes são portadores de tal poder. Ela não caminhou, manteve-se estática em seu lugar no meio da estrada e acenava, sorrindo, sorrindo, e acenando.
Queria que saíssem da toca e fossem lá com ela. O caçador se petrificou por completo, não mexia um músculo e mal conseguia respirar, ao contrário do seu colega que, como se diante de uma vislumbrante aparição, foi levantando e caminhando a passos firmes numa reta quase perfeita, sem se desviar seja de toco ou mato, arbusto ou formigueiro, só parando quando estava a um palmo de encostar na mulher.
A mulher aproximou-se ainda mais roçando seu corpo no dele e seus lábios sobre a pele de seu pescoço. Na volta dos lábios que haviam subido até a orelha direita roçava-lhe os dentes até encontrar a curvatura do ombro. Seus braços suaves como a própria brisa deslizaram peito acima do embriagado homem e gentilmente duas mãos sedosas seguram a face barbuda inclinando graciosamente sua cabeça para o lado esquerdo e num movimento ainda mais suave vira-lhe a cabeça arrancando-a do corpo num átimo.
O caçador assistiu tudo aterrorizado, mas não conseguiu mover um dedo sequer, não se sabe se por medo ou alguma magia da criatura mística que vislumbrava. Quase congelou de frio em sua toca-cova até que amanheceu.
Quando chegou em casa não quis conversa com ninguém, estava mais morto do que vivo. De frio, de canseira, de pavor...
A tarde saiu andar meio sem rumo o que logo na esquina lhe cercaram trazendo as novas do dia: seu companheiro de caça foi achado no mato. Naquele mato da estrada do cemitério velho. Naquela estrada que vai para o Campo Novo. Encontraram o pobre homem todo destroçado, com certeza por alguma fera, ou talvez por aquela que sempre volta. Que tal uma cachorra branca?!

Eber