Com quem o diabo não pode
Andava pela Terra, passeando e fazendo suas estripulias, maldades e intrigas: o diabo. Divertia-se com a inocência das pessoas e exibia orgulho pelo seu domínio, pois, há tempos imemoriais, havia herdado tudo como herança, sempre satisfeito por fazer e acontecer tudo o que bem imaginava.
Estando
ele reunido com seus demônios no inferno, para festejar e decidir
seus próximos feitos, um dos espíritos tomou a palavra e disse:
—
Espírito: Ainda acho que não é bem assim, como pensas a respeito
das gentes na Terra. Sempre há alguém capaz de quebrar o encanto
maligno das trevas. Deves tomar cuidado com tua soberba excessiva,
afinal estamos lidando com criaturas que não são nossas, nem foram
criadas por nós, mas por Deus.
— Tinhoso: Como ousas pronunciar tais palavras entre nós, seu verme insolente? Se não fosses um de nós, apostaria que estavas propondo um desafio. Sabes muito bem que possuo poder para fazer acontecer tudo o que penso e desejo. Faço árvores crescerem retorcidas, com frutos amargos como fel. Basta dizer “Rio, apodreça” e todo leito vira fétido. Faço ventos destruírem, derrubarem e federem…! Faço homens e animais procriarem em excesso e depois se matarem. E que ser seria capaz de me desafiar, como sugeres?
— Espírito: Há um ser vivente na Terra que, creio eu, será muito difícil domar com tuas crueldades, muito menos controlar. Esse ser se chama piá, ou guri, como prefiras.
Num estalo, o demônio surgiu na Terra disposto a se divertir e a provar seu domínio sobre esse suposto oponente.
Chegou em forma de gato diante de um grupo de crianças — ou melhor, piazada — que brincavam de jogar bolicas. Como um gato, esfregou-se em um deles com ar de menino comportado. Mas, quando menos esperava, o piá agarrou-o pelo pescoço e começou a rodopiá-lo, atirando-o para cima e segurando-o em pleno ar pelo pescoço, reiniciando a brincadeira.
Numa das quedas, o Tinhoso armou-se com suas unhas afiadas e dentes prontos para mordê-lo e arranhá-lo, planejando começar pela cara. Mas, em pleno ar, outras mãos se uniram às do primeiro piá: pelo rabo, lá ia para o alto; pelos pés, pelo pescoço; por uma das patas traseiras — e nada de conseguir um arranhão sequer.
De repente, ele caiu ao chão, espatifado como um pacote mole. Pensou que o haviam deixado ali, mas alguém, com incrível rapidez, amarrou-lhe ao rabo um galho de espinheiro, de onde brotavam saúvas por todo lado. Então despencou em disparada, para a alegria da piazada.
Longe
de vista, no meio do mato, transformou-se num belo cachorro pastor
capa preta, pensando:
— Tinhoso: Ah! Com certeza terão medo!
Quando a gurizada o viu se aproximar com cara de muito amigo, balançando o rabo e a língua de fora, foram logo ao seu encontro, fazendo festa. O cachorro chegou de cabeça baixa, fingindo não querer nada, enquanto em sua mente bolava mil besteiras. De repente, alguém passou a mão devagarinho em suas costas e, aí… um forte puxão o fez rodopiar sobre si mesmo, tentando alcançar a fonte da dor no rabo — mas só encontrou o próprio rabo para morder. Mal teve tempo: sua pata foi arrastada para trás com violência. Tentou uma dentada potente, mas nem chegou perto de acertar. Levou formigadas no focinho, chutes sob a traseira e, num piscar de olhos, estava de volta à mata, fumegando de raiva.
Resolveu, então, transformar-se em mula xucra: uma mula feia, de dar pena, tão seca e sem cor decente. Fingiu desinteresse pela vida, pastando longe o bastante para não se importar com a criançada. Sabia, porém, que logo se interessariam por ele. Enquanto isso, maquinava um plano primoroso para aplicar coices e mordidas em cada um daqueles “anjinhos terríveis”.
A mula pastava debaixo de uma árvore, perdida em seus pensamentos hostis, quando alguém caiu sobre suas costas e lhe aplicou uma esporada de fazer ver estrelas. Urrando e corcoveando, não teve tempo de perceber o resto do bando se aproximando numa algazarra capaz de botar para correr qualquer beligerante mal-intencionado. Sua orelha foi puxada com toda força; tentou morder, mas levou chutes nas patas traseiras que o forçaram a sentar com violência. Arrumou as patas para dar coices nos que estavam à sua frente e quase conseguiu, não fosse ser puxado por um cipó preso ao pescoço, tropeçar e cair de costas num emaranhado de pedras pontiagudas.
Entre tantos chutes, puxões, gritos à sua orelha e montarias doloridas, não lhe sobrava tempo para armar uma cilada decente. Caía, zurrava, esperneava, chutava o ar — mas nada adiantava. Dominado por uma raiva imensa, a mula foi ficando preta; depois vermelha, prestes a entrar em chamas com a piazada junto. Foi quando um deles — acredito que o mais forte — desferiu uma bicuda certeira bem abaixo da barriga.
Num estampido que cobriu tudo de fumaça, ele explodiu, exalando o forte cheiro de enxofre, pois esse é o cheiro dele.
De volta ao inferno, estremecia de ira e ódio, quando o espírito que propusera a aventura transfigurou-se em luz resplandecente e subiu para o céu.
Contos da Vovó Noemi
Análise: “Com quem o diabo não pode”
1 - Gênero e Estilo
Gênero: Conto popular / fantástico com elementos de fábula e sátira.
Estilo: Narrativa oral, com linguagem coloquial e regional (uso de termos como piá, gurizada, bolicas, mula xucra), reforçando o tom folclórico e acessível.
2 - Enredo e Estrutura
Introdução: O diabo se vangloria de seu domínio sobre a Terra e reúne seus demônios para celebrar e planejar novas maldades.
Conflito: Um espírito desafia a soberba do diabo, dizendo que há um ser que ele não consegue dominar: o piá.
Desenvolvimento: O diabo assume várias formas (gato, cachorro, mula) para tentar enganar e dominar as crianças, mas é sempre derrotado de forma cômica e humilhante.
Clímax: A transformação em mula culmina numa surra épica da piazada, levando o diabo à explosão em enxofre.
Desfecho: O diabo retorna ao inferno furioso, enquanto o espírito desafiante ascende ao céu, triunfante.
3 - Personagens
O Diabo (Tinhoso): Arrogante, poderoso, mas vulnerável à inocência e irreverência infantil. Representa o mal e a soberba.
O Espírito: Voz da razão e da fé, que desafia o poder do mal com sabedoria e coragem.
As Crianças (piazada): Símbolos da pureza, espontaneidade e força coletiva. Representam o bem, a resistência e a alegria da infância.
4 - Temas Principais
O poder da inocência: A ideia central é que o mal não consegue dominar a pureza e a espontaneidade das crianças.
A soberba e sua queda: O diabo é derrotado justamente por subestimar os pequenos.
Resistência popular: Há um tom de celebração da cultura local e da força do povo simples.
Transformação e redenção: O espírito que desafia o diabo volta ao céu.
5 - Humor e Ironia
O conto é recheado de situações cômicas e exageradas, como o diabo sendo jogado para o alto, mordido, chutado e humilhado por crianças.
A ironia está na inversão de poder: o ser mais temido do inferno é derrotado por quem ele menospreza.
6 - Contexto Cultural
O uso de termos regionais como piá, guri, bolicas, mula xucra e saúvas situa o conto no sul do Brasil, especialmente no Paraná.
A narrativa remete à tradição oral, aos “causos” contados por avós, reforçando o valor da memória e da cultura popular.
7 - Finalmente
O conto transmite uma mensagem poderosa: nem o mal mais astuto pode contra a força da inocência, da coletividade e da alegria genuína. É uma celebração da infância como território inviolável, onde até o diabo perde a pose.